"Mistério na Cidade"- UEF
Jeff tem tido pesadelos com uma estranha e aterradora figura. Damian, pai de Jeff, faz de tudo para manter a família em pé, mas nem tudo é fácil. A vida fica mais difícil, até que o bem-estar de ambos fica em risco.
Género: Drama
É outra noite de inverno. Uma noite aparentemente normal e fria, como sempre. Toda a cidade dorme na maior segurança e tranquilidade. Porém, nem todos têm esse conforto. Algo comum para uns, pode ser um privilégio para outros.
A noite chegava ao fim. Pai e filho haviam acabado de jantar. Foi um jantar muito simples, apenas massa com atum, mas que enche e nem é lá muito mau, em termos de sabor.
Uma hora já se passou desde a refeição. O miúdo tinha acabado de ver o episódio de uma série animada que passa só à noite. Já estavam a tocar os créditos e a música de encerramento da série e Jeff, o rapaz, estava sentado no sofá, a olhar para a frente, onde está a televisão em cima de uma mesa de aparência antiga.
Quando viu que o episódio tinha acabado, apercebeu-se que já passavam das horas. Segundo a experiência, é hora de ir deitar. Por isso, com algum esforço, levanta-se do sofá.
O seu pai ainda está na cozinha, que se encontra atrás de si, mais para a esquerda. Ele está a lavar os pratos que tirou da mesa à direita da cozinha. Na verdade, a cozinha e a mesa de refeições é apenas dividida por um pequeno balcão. Logo, não há grande espaço de separação.
De momento, o seu pai parece um pouco ocupado. Espera um beijinho de boa noite como sempre tem acontecido. Talvez ele vá demorar um pouco, mas Jeff não. Chamem-lhe impaciente, porém está demasiado cansado para esperar. Sim, não deve fazer mal ir andando. Apenas precisa de deixar bem claro o que vai fazer.
Jeff: "PAI! VOU ME DEITAR!"
Grita para informar o seu pai, numa forma muito alta de deixá-lo saber onde vai.
Damian: "PODES IR ANDANDO! ESTOU A ACABAR DE LAVAR OS PRATOS!"
Responde de volta, para lhe dar ideia do quanto ele terá de esperar. E pelos vistos, não demorará muito.
Então, Jeff vai até à sua direita, dirigindo-se às escadas. Caminha e em três passos para a direita, chega ao pé da escadas. No entanto, antes de colocar um pé que for no degrau, vê algo. Algo viu que o impediu de ir diretamente para o andar de cima.
Foi um calendário, preso na parede que pertence à cozinha. Jeff apenas passou por lá os olhos de relance, mas rapidamente focou lá todas as suas atenções ao ponto de ter parado antes de sequer poder subir as escadas.
O que mais lhe chamou a atenção não foram os dias passados. Não, foram os dias que estavam por vir. Para ser mais específico, o que lhe chamou mais a atenção foi o dia circulado com tinta vermelha. Dia 27. O dia que não será amanhã, nem depois de amanhã, mas depois deste último.
Ao ver esta data, o seu rosto fica imediatamente mais sério. Memórias vêm-lhe à cabeça. São memórias de eventos que gostaria de esquecer. Eventos que aconteceram há muito, mas que, permanecem na sua cabeça. Marcaram-no e continuam a marcar. São cenas e vislumbres que lhe estão a ser constantemente relembrados.
Mas chega. Não, tem que parar com isto. Lembrar-se de coisas do género apenas trazem tristeza e arrependimento. Jeff dá o máximo e consegue desviar o olhar daquele número. 27. Tem que se focar no presente e agora, o que importa é subir as escadas.
Com muito esforço, ele lá consegue trazer a sua mente de volta ao presente. Volta e sem efeitos colaterais. Não fica tonto nem nada. Apenas voltou ao presente sem mais nem menos. Tirou-se do passado e agora de volta, não gasta um segundo que seja.
Por isso, Jeff assenta o primeiro pé na escada e vai subindo. A esse pé sucedeu-se outro que assentou no segundo degrau. Por sua vez, o primeiro pé no primeiro degrau levantou e assentou-se no terceiro degrau. Tudo para assentar o segundo pé no segundo degrau para o quarto. E acho que já estão a entender como funciona.
Isto aconteceu por volta de umas 8 vezes. Levando em consideração que tem 17 degraus. De qualquer forma, em alguns segundos, Jeff chega ao andar de cima.
Imediatamente, viu que tinha duas opções: ir para a esquerda ou ir para a direita. À direita, está a porta branca que leva para o seu quarto. À esquerda, a porta que levava para o quarto de sua mãe e que agora é só de seu pai. Já o resto é só a parede branca e nada mais.
Nem sabe porque questiona onde deve ir. Só há um lugar óbvio. Como tal, ele vira à direita. Chega ao pé da porta do seu quarto, coloca a mão na maçaneta, gira-a e empurra-a para a frente. Desta forma, ele abre a porta do quarto.
O seu quarto não é nada de especial. Só paredes azuis, um armário, uma mesa de cabeceira e uma cama bastante confortável. Tem um interruptor na parede junto à entrada e outro junto à cama, servindo ambos para acender uma lâmpada que se encontra no teto, mais próxima da entrada do que da cama. Apenas isso. O que explica o porquê de eu não estar a descrever tudo o que compõe o seu quarto.
Jeff também sabe que não tem nada de interessante. Tanto que não gasta tempo a observar nada. Junto à entrada, ele encosta a porta, simplesmente dá uns passos, chega ao pé da cama e deita-se.
Sem mais nem menos. Nada de cortesias ou drama. É apenas um miúdo cansado a colocar-se no meio dos cobertores da cama para se proteger do frio do inverno. Em pouco tempo, estava aconchegado pela cama e pronto para se deitar. Só precisava de apagar a luz.
Sim, acha que pode esperar pelo seu pai. Ele não deve demorar muito, certo? Foi o que ele pensou. Sendo assim, de luz acesa, permaneceu de olhos abertos à espera do seu pai. Olhava para o teto branco com cara de parvo, julgando que o seu pai não iria demorar muito.
Pois lá foi um minuto. Dois minutos. Três minutos e foi este o ponto onde percebeu que aquilo era uma perda de tempo. O seu pai vai demorar muuiitooo mais tempo para chegar. Para variar, fez uma promessa que não cumpriu.
Que seja. É Jeff quem fica a ganhar. Decidindo-se, ele apaga a luz e prepara-se para deitar. Acontece que...para Jeff...não é assim tão fácil. Há um grande problema.
A luz efetivamente é apagada. O problema vem depois. Afinal, quando o clima vai de iluminado a escuro, Jeff também muda. A sua respiração acelera. Coração bate mais rapidamente. Ele vai de deitado a sentado. Jeff agarra com mais força o cobertor. É como se ele soubesse o que aí vinha. É como se o que por aí viésse não fosse coisa boa de todo.
Pura penumbra. Não dá para ver nada dentro daquele quarto, no entanto, Jeff consegue sentir a presença de algo. Não parece ser humano. Não, não pode ser real. No entanto, não é a primeira vez que sente a sua presença. Não é a primeira vez que a criatura o visita. Seria de se esperar que, com a frequência com que a criatura aparece, Jeff já se teria acostumado com a sua presença. Contudo, o contrário acontece.
Ele treme de medo, segurando, medrosamente, no cobertor. Está sentado na cama, nervosamente, a observar a figura que se encontra camuflada na escuridão. Até porque já esperava que ela teria despaarecido neste ponto.
Nenhuma luz está acesa. É neste clima que Jeff se encontra indefeso. A criatura bem pode fazer o que quiser, uma vez que, ninguém a pode ver, quanto mais impedir.
Tudo está em condições. Vai a criatura dar o primeiro passo em direção à cama onde se encontra Jeff.
Ela levanta a sua pata de dimensão elevada e aparência grotesca, em meado àquela escuridão, e quando a vai pousar no solo, quando vai dar o primeiro passo...
Voz familiar: "Está tudo bem, Jeff?"
Subitamente a luz acende. A porta está aberta e junto a ela está o pai de Jeff, Damian.
Parece que a criatura desapareceu. Mal a luz acendeu, fugiu. Só pode ser isso. Ele deve ter medo da luz. A luz que foi acendida quando Damian clicou no interruptor da entrada. A luz é a sua fraqueza. É isso ou...
Damian: "Cheguei num bom momento?"
A pergunta do pai quebrou qualquer sentimento de medo que Jeff possuía naquele momento. Damian coloca-lhe um pergunta genuína. Realmente está preocupado com o estado do seu filho.
Jeff: "P-Pai...foi um pesadelo."
Damian nem precisa de ouvir mais nada. Imediatamente, com esta voz hesitante e trémula do filho sabe logo o que se passou. Tem já se tornado recorrente. Por isso, ele dirige-se à cama e senta-se, junto à cômoda.
Damian: "Não me pareces lá muito bbem.E olha que isto vem de alguém que não experiencia isto há...bem...quase um ano."
Comenta Damian, num tom de voz calmo e sereno, capaz de acalmar qualquer um. Até Jeff deixa os nervosismos de parte e, em resposta, acena com a cabeça, confirmando a preocupação do pai. É claro que ele está a confirmar uma sopusição que é mentira, mas fá-lo para não preocupar ainda mais o seu pai, que se encontra sempre ocupado.
Damian olha para o teto, para a luz candelabro. Ela transmite-lhe uma certa segurança. Pergunta-se se a luz dá o mesmo sentimento a Jeff, este que deve sentir mais medo do que qualquer um. Enquanto olha para cima, ele começa a monologar:
Damian: "Imagino o quão difícil deve ser."
Jeff estranha a súbita divagação, mas continua a ouvir Damian, atentamente.
Damian: "Não conseguir dormir porque temos medo. Deve ser mesmo terrível entrar na cama e, quando parece que vamos entrar no sono, deparamo-nos com um pesadelo e voltamos a acordar. Qualquer um tem direito a descansar, não importa o quão benevolente ou maldoso seja. Esse é um Direito Humano. Acredita, com o trabalho de bosta que tenho, adorava também puder descansar."
Jeff: "Hunf."
Foi uma leve risada. A piada foi propositalmente proferida com o objetivo de aliviar o clima e parece que funcionou.
Damian: "De qualquer forma, quero que saibas que não precisas de temer nada."
Jeff: "É mais fácil falar."
Diz, mostrando uma certa indignação com a recomendação do pai.
Damian: "Pois, é bem provável que tenhas razão. Apenas posso imaginar o pesadelo que deve ser ver o que se vê nestas noites."
Jeff: "É terrível. Só de me deitar na cama e não conseguir imediatamente dormir. Ficar acordado pois...sei que isto voltará a acontecer."
Damian levanta a sobrancelha perante a revelação. Parecendo que esta situação tem mais que se lhe diga. Mas o seu filho continua.
Jeff: "Isso e não me sai da cabeça..ao que me causa estes pesadelos. Afinal, ainda me pergunto e tento entender o que aconteceu...como é que o mundo pôde ser tão...cruel."
Damian: "É compreensível."
Os dois entram em silêncio. Jeff abriu-se e revelou alguns dos seus sentimentos mais íntimos, mas, daí, a conversa não tem muito mais para onde progredir. Por isso, o silêncio reina.
Ambos olham para os arredores, procurando algo em que se concentrarem. Contudo, Damian tinha algo por dizer. Sabia o que tinha para falar, mas não sabia se iria funcionar.
Damian: "Quero que saibas uma coisa, Jeff."
Jeff: "Sim?"
Damian vira a cabeça para encarar o filho. Olha-o com olhos a transbordarem de carinho e compaixão. Ama o seu filho e não quer que nada de mal aconteça com ele. Por isso, vê-lo sofrer, também o faz sofrer.
Jeff: "Porque é que olhas para mim com essa cara?"
Damian: "É óbvio."
Damian levanta o braço e pousa a mão na cabeça do filho. Sente os seus fios de cabelo oleoso e despenteado nas pontas dos seus dedos. Ali está ele: o seu filho, Jeff.
Jeff: "Ei!"
Damian: "Tem calma, não te estou a fazer mal algum."
Jeff começa a corar nas bochechas. Fica todo avermelhado nas extremidades laterais do seu rosto. Não está habituado a receber tanto carinho, especialmente momentos após uma cena tão tensa.
Jeff: "Pai?"
Damian: "Hã?"
Jeff: "Estás muito esquisito. Nunca me tocas assim, desta forma tão..."
Damian: "Carinhosa?"
Jeff: "Sim, isso mesmo."
Damian sorri. Achava que, acima de tudo, o seu filho não estranharia este tipo de atos. Já para não falar que a razão não poderia ser mais óbvia. Mesmo assim, Damian, sem alguma hesitação, responde:
Damian: "Quando alguém te trata bem, nunca deves recusar os seus tratamentos. É rude, sabias?"
Jeff: "D-Desculpa."
Pede ele desculpas, envergonhado, como se tivesse cometido o maior pecado já alguma vez testemunhado.
Damian: "Mas, já que estás tão curioso, eu conto-te o porquê de te acariciar tanto."
Damian pausa um pouco antes de responder. Ele passa a mão direita da cabeça para a sua avermelhada bochecha. A zona do seu rosto em questão está quente. Quase que consegue a sentir o sangue a fluir por entre aquelas camadas de pele.
Só então, com o coração quente que só podia pertencer a um pai, ele honestamente responde:
Damian: "Se eu faço alguma coisa, então é porque te amo."
Os olhos de Jeff permanecem os mesmos. Estas palavras que moveriam qualquer um, não surtem efeito contra o rapaz. Ainda assim, ele ao menos finge estar atento.
Damian continua.
Damian: "Tu és a minha razão de viver. Todas aquelas horas de trabalho a escrever notícias insignificantes valem a pena, pois sei que, no fim, estou a trabalhar para te manter feliz, para poder ver esse teu sorriso novamente."
Nesse momento, Jeff força um sorriso. Não é genuíno, mas não quer decepcionar o pai que por ele tanto trabalha. Até se sentiria mal se, ao menos, não fingisse que estava feliz.
Damian: "É esse o sorriso que quero ver. Por isso, faz-me esse favor e mantém-no sempre aí. Já para não falar que é só mais amanhã e chega o teu dia."
Damian tira a sua mão do rosto do filho e volta a pousar a mão na roupa azul da cama.
Damian: "Prometes-me que vais sempre ser feliz?"
Ao que Jeff, forçadamente, responde:
Jeff: "Prometo."
Damian sorri em resposta. A sua missão ali já acabou. Conseguiu aliviar o clima e, segundo o seu senso, alegrar um pouco o seu filho.
Damian: "Bem, acho que tenho de ir andando. Já está a ficar tarde."
Jeff: "Estou a ver que hoje trouxeste muito trabalho para casa."
Damian: "Raio do Daniel. Não pode dar-me nem um dia de descanso."
Jeff: "Haha."
Jeff ri-se, mas, desta vez, de forma mais audível e visível.
Damian abre ainda mais o sorriso e levanta-se da cama.
Damian: "Hora de voltar ao trabalho. Adoraria mesmo estar de férias como tu, mas a vida não é assim tão simples. Não com o chefe que tenho."
Jeff puxa a roupa da cama para si, preparando-se para dormir, agora, um pouco mais tranquilo.
Damian vai até à porta e prepara-se para sair.
Damian: "Boa noite, Jeff. Dorme bem. Ah! E não te esqueças..."
Jeff: "Do quê?"
Damian: "Se precisares da minha ajuda é só chamares."
Jeff sente a importância que ele tem para o seu pai. É tamanha que nem os maiores matemáticos a conseguiam calcular.
Só sente pena nunca conseguir retribuir com o tal sorriso que o seu pai quer. Pode mentir as vezes que quiser, mas aquele sorriso nunca será autêntico. O medo nunca o deixará. Mesmo assim, não vai deixar o pai triste, custe o que custar.
Então, ele diz:
Jeff: "Obrigado, pai."
Damian: "Dorme bem, filho."
E a luz é apagada. No segundo seguinte a porta é fechada e o quarto volta a entrar naquela penumbra.
Desta vez, a criatura parece não aparecer. Por hoje, já deu o que tinha para dar. Amanhã, certamente voltará. Tudo continuará. O pesadelo ainda só começou.
Jeff já espera isso. A criatura não aparece, mas ele não está para passar risco. O que aconteceu há bocado foi real. Real e único. Nunca viu o monstro a movimentar-se. Há uma primeira vez para tudo, contudo não quer ver a primeira vez em que a criatura sai da sua posição. E mesmo que ele não venha a aparecer mais hoje, sente que não conseguirá dormir, sabendo que, no escuro, o monstro está no seu território.
Como tal, ele estende a mão esquerda para o lado e clica no interruptor da parede, ligando a luz. É curioso como a iluminação lhe dá segurança. Ir de penumbra a iluminado dá-lhe uma maior felicidade e sentimento caloroso que nunca esperava.
Agora sim. Com este sentimento calmante e que lhe lembra dos ombros da sua mãe, já pode dormir em paz. Tudo está mais calmo. O seu coração mais quente e lento. Respiração mais pesada e mente mais leve.
Os seus olhos começam a fechar-se naquele ambiente que, para muitos, é pouco propícuo para dormir. No entanto, como disse, há muito que é subjetivo. E, para Jeff, não podia haver melhor clima para adormecer. Luz e abrigo do frio de inverno. Para Jeff isso é o suficiente para dormir. Neste momento, já estava a dormir. Só não se tinha apercebido disso.
O sol nasce, marcando o fim da noite. O barulho dos grilos dá lugar ao cacarejar dos galos (pelo menos nas zonas menos industrializadas). O sono dá origem ao despertar.
Muitos ainda se encontram a tomar o duche, lavar os dentes ou a tomarem o seu pequeno-almoço de quarta-feira. Este é o dia de semana que ninguém gosta, mas ninguém odeia. É aquele meio-termo perfeito. Aquele que tenta agradar todos, mas acaba por não agradar nenhum.
Para ele não era diferente.
O adulto que não se importava com nada.
Que tinha a mente vazia.
Apenas com a imagem de...
...uma porta na sua cabeça.
A porta que está na sua casa.
A porta trancada onde nem ele nem o seu filho entram.
O mais novo por simplesmente não ter a chave e...
...o outro porque...
...escondeu aquilo ali, naquele dia.
*Wiouiuoiui*
Quando a senhora enfermeira...
...aquela cujo nome infelizmente esqueceu...
...mas de presença marcante...
...
...aquela que lhe disse...
Enfermeira: "..."
...
...
...
Enfermeira: "Senhor, ela-"
Damian: "...---"
............................
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E...
...dá por si já em pé.
Com o sol a bater na sua nuca.
No dia seguinte. Já vestido para o trabalho. A olhar para uma porta, mas não aquela.
Trata-se só...
...da porta de casa.
Não há nada com que se preocupar. Não na vida real. Não fora da cabeça com imaginação formidável...
Não que ele tem mais a fazer e...
...pensar no que já lá vai não lhe vai adiantar nada.
Isso pode garantir.
Damian: "É..."
Damian saía de casa. Levantava-se mais cedo do que qualquer outro típico trabalhador. Tomava o duche primeiro, lavava os dentes primeiro e tomava o pequeno-almoço primeiro. É de se esperar que saia à rua antes que qualquer outro que depois dele tenha acordado.
Lá saía ele, no seu fato preto e gravata branca de riscas vermelhas. Se o seu emprego não o obrigasse a usar uma vestimenta tão idiota... Pelo menos, nesta altura do ano, até dá jeito. Afinal, já estão no fim de novembro e está a vestir camadas de roupa de manga comprida. Enfim...
Damian: "Está!"
Dizia para si mesmo, enquanto trancava a porta de casa por fora com a chave.
Já tinha tudo feito. Assegurou-se de que a porta ficou trancada. Teve essa preocupação, pois, lá dentro, Jeff dormia, tranquilamente.
É um aluno do 8°ano, mas encontra-se em regime de férias. Férias de inverno, para ser mais preciso. Este é um momento para aproveitar. Bem sabe Damian que, no futuro, o seu filho terá poucas ocasiões em que possa dormir despreocupado, como se encontra agora. Por isso, quer garantir que nada estragará este momento. Também pois seria, no mínimo chato, ter alguém a entrar em casa.
Especialmente agora, Damian quer mesmo ter a garantia de que a sua porta está fechada.
Damian segue pelo passeio da vizinhança. Olha as casas, enquanto por elas passa.
Não têm nada de mais. Talvez seja por vê-las praticamente todos os dias.
O céu está limpo, deixando o sol brilhar sob a superfície com toda a sua glória, mas, ao fundo, vê que nuvens negras se aproximam. Este bom tempo não durará para sempre. Seria bom demais.
Recentemente têm sido só enxurradas de chuva. Raramente, o pobre sol aparecia. Aparentemente, hoje também será mais um dia com chuva. Embora, inicialmente, aparente que haverá alguns raios de luz solar a alcançar a superfície.
A rua está vazia. Mais ninguém por lá passa. Damian já se acostumou com este sentimento de solidão. Este sentimento que lhe traz más memórias. Memórias que já compreendeu e chegou a bons termos com. Estas memórias, que antes lhe traziam tristeza, agora fazem-no sorrir.
Gostava que uma certa pessoa fizesse o mesmo.
Voz misteriosa: "Haha!"
Umas risadas ecoam pelo ar silêncio daquela manhã. Risos de quem está fora de si. Interjeições vindas de alguém que se encontra mais à frente.
Damian estranha ouvir algum barulho que fosse naquela vizinhança, ainda por cima a estas horas da manhã. Seja quem for, deve ser uma pessoa um pouco quanto rude. Sabe-se lá se acordou alguém com a sua alta risada que ecoa por todo o bloco.
Voz misteriosa: "Hahahahuuu! Ena pá! Ufa!"
Após dar mais uns passos adiante, Damian vê o agitado homem, a fonte das loucas e descontroladas risadas.
Voz misteriosa: "Caramba. Que noite."
O homem encontra-se sentado no chão, ao lado do caixote do lixo de cor verde vómito. Na mão direita, segura uma garrafa verde, semelhante à cor do caixote. Com a mão direita, ele limpa o súor da testa.
É um homem grande e encorpado. Na cara, tem um sorriso quase anormal. Parece demasiado feliz. Sem dúvida que esteve a beber na noite anterior e, por coincidência, veio parar ao bloco. Pelo menos, é nisso que Damian quer acreditar.
O grandão nota na presença de Damian, que caminha no passeio que se encontra do outro lado da estrada. Mal nota na sua presença, a sua expressão muda. Vai de um inacreditável júbilo a uma arrepiante seriedade. O seu sorriso desaparece. Em troca, surge uma expressão sisuda, de alguém com poucos amigos.
Damian também nota nesta súbita mudança de sentimentos. Começa a preocupar-se. Será que o homem o reconheceu?
Ele acelera o passo. Não esperava que algo do tipo acontecesse e também não quer ficar muito mais tempo no local.
O homem observa Damian a entrar em pânico. Vê-o a acelerar o passo, querendo desaparecer dali o mais rápido possível. Chega a ser entretê-lo, de uma forma esquisita.
Homem misterioso: "..."
Olhando apreensivamente o que decorria do outro lado da estrada, o homem leva a garrafa à boca, engolindo o que sobrava no fundo do recipiente.
Damian caminhava e caminhava. Como se não houvesse amanhã, ele ia distanciando-se cada vez mais da misteriosa pessoa.
Em meros segundos, ele deixa-o para trás. Mesmo ultrapassando-o, Damian não para. Ele não consegue parar. Parar significaria que o homem poderia apanhá-lo. Isso é que não poderia acontecer.
Damian: "C-Como?"
Pergunta-se para si mesmo, visivelmente atormentado, enquanto continua a sua veloz caminhada em direção ao trabalho.
*Pim* *Pim* *Pim*
Que som irritante. Jeff jura que o tinha desligado da ficha na noite anterior, mesmo antes de ir dormir.
*Pim* *Pim* *Pim*
No fim, deve ter sido apenas uma fabricação da sua mente. Como resultado, acordou às 8 horas da manhã de uma terça-feira de verão. Imaginem o quão frustrante deve ser acordar a horas de trabalho num dia de férias. Enfim, que fazer.
*Pim* *Pim* *Pim*
Jeff: "Ughn. Raio do despertador."
O barulho obriga-o a abrir os olhos. Mal os abre, depara-se com demasiada luz. Está deitado na cama a tentar observar o teto com os raios solares e feixes de luz de uma lâmpada no teto. Trata-se de uma escuridão mais forte. Talvez seja da luz solar que transparece pela cortina da janela.
*Pim* *Pim* *Pim*
Já deu para perceber que já não voltará a adormecer tão facilmente. Não tem muita escolha.
*Pim* *Pim* *Pim*
Jeff: "Chato."
Reclama, claramente indignado.
Sem deixar passar mais um segundo que fosse, Jeff senta-se na cama e mete um valente soco no despertador, impulsionando-o para fora da mesa da cabeceira. Assim, o despertador cai no chão, sendo desligado da ficha com o impacto.
Cumprido o objetivo, ele levanta-se.
Com os pés assentes no chão, Jeff calça as suas pantufas com a forma da cabeça de um leão e dirige-se até à porta, naquele quarto com a luz ligada.
Por sinal, as pantufas que Jeff usa são bem únicas, atrevo-me a dizer. Muitos as considerariam "fofas".
Está pronto para descer para a sala de estar. Contudo, antes de descer, mesmo estando junto à porta, ele quer apenas verificar uma coisa.
Jeff, antes de abrir a porta e dar o primeiro passo para fora do quarto, ele olha para um canto do quarto. O mesmo onde supostamente estaria localizada a misteriosa criatura que tanto teme.
Parece vazio. A criatura saiu. Desapareceu. Porquê? Isto acontece sempre, mas Jeff nunca sabe porquê.
A sua sorte é que, nesta noite, o seu pai o veio ver, como maneira de averiguar se tudo estava bem. Estes pesadelos tornaram-se tão comuns, mas ainda não falou sobre eles ao seu pai. Terá de o fazer eventualmente se eles se continuarem a intensificar.
Jeff: "..."
Pode olhar o quanto quiser, mas a criatura desapareceu. Nada vai mudar esse facto. Ainda assim, não deixa de incomodar Jeff. Ele nem sabe se o que vê é verdadeiro ou apenas outro produto da sua imaginação, tal como o acontecimento com o despertador. Mas acha que não vale a pena gastar muito tempo a pensar nisso. Tem mais coisas para fazer e outras prioridades, de momento.
Jeff abre a porta, deixando entrar mais luz para o quarto. Luz essa que vem do andar de baixo, das janelas abertas da entrada e da sala de estar que vagueia por toda a casa.
Um dos locais que a luz ilumina ainda mais é o canto do quarto que Jeff atentamente observa. A luz permite confirmar algumas das suas incertezas.
Sim, está vazio. Não vale a pena olhar mais. Está visto. Neste ponto, está a tornar-se psicótico. Afinal, o canto está vazio.
Por fim, acaba por concluir que não há nada de mais. Vá se lá saber porque é que a criatura desaparece sempre de dia e na presença de luz. Nunca via saber porque é que ela tem medo do escuro, mas, enfim...
Se os cientistas também se chateassem tanto por desconhecer todos os mistérios do mundo, nunca comeriam na vida. Já que fala nisso, a sua barriga já está a dar horas.
E assim, ele desliga a luz do quarto (julgando a divisão estar demasiado bem iluminada) e, deixando a porta aberta, permitindo que haja alguma iluminação naquela divisão que durante a noite tanto tem sido assombrada. Ou, pelo menos, assim parece ter sido.
Lentamente, ele desce as escadas. Sente a luz a tocar-lhe no pijama e, à medida que vai descendo, a subir-lhe no corpo. Vai dos seus pés, ao estômago, pescoço e cabeça, obrigando-o a fechar os olhos.
Quando chega ao andar de baixo, pode finalmente abrir os seus olhos, sem medo algum que o sol os magoe. Já os manteve fechados por muito tempo, durante o sono.
Acabando de descer o último degrau, Jeff fica frente a frente com a porta. Parece já estar trancada. Isso significa que o seu pai já partiu para o trabalho.
Mas chega de pensar em outras coisas. Jeff vira as costas à entrada e dirige-se até à sala de estar. Está esfomeado. Sente que, não tarda muito, e a sua barriga começará a roncar.
Um som parece vir dessa divisão em questão.
Voz da televisão: "Hoje, recebemos notícias trágicas."
Jeff chega até à sala de estar e, para a surpresa de nenhum, vê a televisão ligada. Ainda por cima, encontra-se num canal de notícias. É toda a informação que precisa para saber o que se passou.
Parece que o seu velhote precisava de companhia enquanto tomava o pequeno-almoço. Lá no fundo, ele deve ter saudades do seu filho durante a manhã. É um tipo mesmo porreiro. E, para ser sincero, não podia estar mais certo.
Voz da televisão: "Ontem à noite, provaram-se vagas de assaltos e roubos por todo o Estados Unidos. O motivo desta grande onda é desconhecido, mas facto é que as ruas estão cada vez mais perigosas e por isso os governos pedem à população cautela sempre que forem sair à rua."
Vai de mal a pior. O que é que teria custado a Damian para meter num canal mais alegre? Como se já não bastasse as preocupações que vivia sempre antes de adormecer, ainda tinha de se contentar com a grande novela que é o mundo.
O pivô das notícias continua:
Voz da televisão: "Adiante, as autoridades continuam investigações na Florida International School. As explicações dos órgãos de segurança social permanece que foi um homicído-suicídio por parte de um deles, mas familiares e pais de outros sugerem que pode haver algo a mais para a narrativa. Isto segundo relatos de outras testemunhas."
Jeff já nem aguenta mais ouvir algo de mal a vir da boca do pivô. Sabe que ele está apenas a cumprir o seu trabalho, mas não consegue evitar contrair alguma raiva para com o pobre homem de meia-idade que apenas se limita a ler o que lhe é pedido.
Até porque...aqueles relatos...o que ele fala...a tal de origem sobrenatural...apenas o deixa mais maluco. Com mais memórias das experiências que tem a cada noite. Do medo que tem da criatura que...
...como uma doença o afeta...
...lentamente se entranhando na sua mente.
De qualquer forma, não é como se o seu pai tivesse um trabalho lá muito melhor ou sequer diferente. Por enquanto, tenta ignorar o som da televisão. É tudo uma questão de psicológico.
*Prumfh*
Este foi um som. Quase que um alarme. A sua barriga, sem dizer uma compreensível palavra, transmite a mensagem em alto e bom som: quer comer. Está com tanta fome que começou a roncar.
Já estava a sentir que o sinal aí vinha mais cedo ou mais tarde. Estas são necessidades que não pode suprimir. Mais vale dar ao corpo o que ele quer, caso contrário, ele impedi-lo-á de fazer o que quer. É uma relação um pouco tóxica, mas não tem muita opção. Então, ele vai até à cozinha.
Abre o frigorífico e vê o que há para comer.
Jeff: "Hum..."
Tem uma cerveja. Um pacote de leite. Uma barra de cereais. Restos do jantar de ontem. Ou, se quiser, tem também água. Para ser sincero, não tem muita escolha.
A sorte é que não tem muita fome. Ontem jantou mais cedo e o jantar soube-lhe mesmo bem. Caramba, aquela omelete é de comer e suplicar por mais. E olhem que Damian não é muito bom na cozinha, contudo, sabe fazer uma boa omelete. Mas quanto ao pequeno-almoço, pode ser qualquer coisa. Talvez isto.
Ele pega na barra de cereais, ainda no pacote, e vai até ao sofá. Jeff senta-se e senta aquela ternura. Aquela fofura transmitida pelo sofá. Dá até vontade de lá ficar até o final do dia. E Jeff tinha acabado de acordar. Para ele achar isso era porque o sofá sabia mesmo bem.
*Prumfh*
Mas a fome não perdoa. Bem queria assim ficar a relaxar, contudo, a sua barriga não para de roncar.
O corpo humano pode ser mesmo chato. É tal como disse, uma relação tóxica.
Jeff desembrulha a embalagem que envolve a barra de cereais. A barra está revelada. Pronta para ser comida.
*Prumfh*
Agora a barriga deixará de roncar.
Bom apetite para ele.
É o que pensa, preparando-se para devorar aquela pobre barra de 20 centímetros.
Então, ele dá a primeira mordida.
*krunch*
Tira uma grande parte da barra, numa mordida que salienta o carácter crocante do alimento. Por volta de 7 centímetros acabaram de ser ingeridos. Fica um pouco seco, mas isso não importa. Afinal, está com fome, não com sede.
Jeff: *prunk* *prunk*
O rapaz mastiga de boca aberta, fazendo um alto som. Como se não bastasse o alto barulho do mastigar de boca aberta, o cereal era bastante crocante, soltando um som que se tornou irritante em poucos segundos.
Mastigou e mastigou por uns bons segundos.
Jeff: *prunk* *prunk*
Foi quase um minuto só a mastigar.
Jeff: *prunk* *prunk*
Parecia não ter fim, mas, até que em fim, após tanto mastigar...
Jeff: *prunk* *prunk*
...ele finalmente engole o raio do pedaço da barrita.
Jeff: *hungh*
O pedaço da barrita escorre como manteiga pela sua garganta. Esteve quase um minuto na sua boca a ser processada. Surpreenderia se não escorresse assim tão facilmente.
Um pedaço já foi. Faltam mais uns centímetros. Isto vai demorar muito. Ate Jeff se apercebeu disso. Daqui a pouco ainda adormece a comer. Especialmente, agora que está em cima deste confortável sofá, a vontade de dormir é maior.
Precisa de algo. Algo que o entretenha. E não o raio das notícias trágicas que tem estado a tentar ignorar.
Pivô: "Uma lenda conhecida como Noise continua a causar o caos nas aldeias remotas. Principalmente na aldeia de Garden, que continua a ser atormentada há bastantes semanas. Ainda assim, as autoridades permanecem quietas, apesar das inúmeras queixas por parte dos cidadãos, acreditando que não apenas se trata de uma alucinação coletiva."
Ok, agora ficou impossível de ignorar.
Ele olha em redor, mas não perde muito tempo. Quem é que está a tentar enganar? Não tem muitas opções em casa. Ou vê televisão ou nada.
Por muito que amaldiçoe a televisão, ela ganhou desta vez e...espera lá. Deve estar a ficar maluco. Já trata a televisão como um objeto animado. As férias não ajudam a saúde mental de ninguém. A ficção já se está a infiltrar na realidade. Mas isso deve ser só de Jeff.
O miúdo pega no comando da televisão, que tinha largado no sofá e muda de canal. Coloca um programa de desenhos animados. Já não vê há muito tempo. Lembra-se principalmente de gostar de um programa com robôs que lutavam no espaço.
Jeff: "???"
É um programa esquisito. Um bando de póneis coloridos a abraçarem-se. O que é que a geração atual está a consumir? Parece algo vindo de um sonho macabro que costumava ter aos 5 anos. Ou talvez alguém esteve a consumir estupefacientes e conseguiu esta ideia horrorosa. De qualquer forma, não quer descobrir.
E muda de canal. Para a sua sorte, este programa agora prestava. A nostalgia foi-lhe instantaneamente injetada nas veias.
Jeff: "Impossível..."
Nem ele sabia que este programa ainda passava. Isso deixou-o mesmo feliz. Uma boa surpresa para quem pouco toca na televisão ou mal vê desenhos animados.
Jeff: "Pensava que já não passavam este programa."
O programa de robôs que via ainda passa na televisão. Está a dar neste momento. Que alegria. Que alegria para o rapaz. Sempre tem algo para se contentar. Após tanto tempo a tremer de medo na cama é mesmo bom ter algo com que se entreter. É mesmo bom ter algo que, mesmo que por só uns momentos, o faça esquecer das más partes da vida.
Jeff: "Caraças, nem me lembrava disto!"
Dizia ele, entusiasmado com o novo desenrolar da história. Nem ele se lembrava de ser assim tão épico.
Parece que terá de rever aquele programa durante as férias. Tem tempo para tal e, como tal, é melhor aproveitar. Também não é como se tivesse algo melhor para fazer.
Promete para si próprio. Bem, pelo menos já tem algo para fazer nestas monótonas férias de Natal.
Estava tudo excelente. Jeff estava a divertir-se com as lutas e momentos épicos proporcionados pelo programa. Tudo bem, até que...
Locutor do canal infantil: "De seguida, a estreia de uma nova série."
Jeff estava mesmo a gostar da série. Porque é que tinha de acabar? Mal ele sabia que a série tinha baixas audiências. Isso pode explicar a descida na qualidade da animação. Mas, para Jeff, nada disso importava. O que a série não tinha em dinheiro, compensava na história. Por isso é que ficou bastante irritado por ver que iriam mudar para outro programa. Afinal, como se atrevem eles a seguir com a programação normal.
Jeff: "Por favor..."
Comenta, dando uma última dentada na barrita de cereais.
A série estava tão boa que, sem se aperceber, já estava sentado na ponta do sofá e já com a barrita toda comida. Isso é um testamento à qualidade da obra. Como é que a próxima poderá superar as qualidades desta?
Jeff atira o pedaço de plástico da embalagem da barrita para a televisão. O pedaço atinge a televisão, mas não faz nada. Simplesmente bate, não surtindo qualquer dano na infraestrutura, e cai, flutuando, no chão.
O que acabada de fazer foi quase como se estivesse a chamar um enorme palavrão ao canal. Até parece que o conhecem. Pode reclamar as vezes que quiser, pois nada vai mudar. O programa está prestes a começar.
Indignado, ele cruza os braços e concentra-se no ecrã da televisão. O programa começa.
Começa a tocar a abertura. Uma música alegre invade a casa. O problema não surgiu aí. Nos primeiros 5 segundos da abertura, ele apareceu. Uma figura. Algo que pensava que tinha ficado no seu passado. Aquela figura...
Alguém que nada sabe sobre ele ficaria confuso. Contudo, o miúdo está em choque. O que estava na tela da televisão neste momento...era algo que achava que já não existia...não fazia a mínima que ainda era algo neste mundo...
A sua respiração acelera ao vê-lo. Os seus olhos arregalam-se de surpresa. O peito vai ficando cheio e vazio à medida que respira e expira. A sua respiração torna-se bastante visível ao olho comum. Tudo graças ao que estava agora a ver...
É um...um urso. Castanho, aparentemente fofinho, mas que, para Jeff é aterrorizante. Não consegue... aguentar aquela visão. Aquela figura traz-lhe más memórias. Memórias que gostaria de esquecer. Memórias que não o deixam em paz.
O seu coração bate rapidamente. Jeff está ofegante. Parece que correu uma maratona. Parece que os seus olhos ficaram mais pesados. Quer...fechá-los. Mas não está com sono. Tem o coração a mil e está completamente perdido. Como se isto fosse um ataque de pânico.
Se isto continuar...
Se continuar...
Ele...
Jeff...
Ele vai...
...desmaiar.
A sua visão está a ficar esbranquiçada. Fica cada vez mais difícil ver o que está adiante. Os seus olhos começam a encerrarem-se como um túmulo.
Está prestes a adormecer. Vai desmaiar. Já não consegue ver praticamente nada senão branco. No entanto...
O seu corpo não o deixa.
Unindo todas as forças presentes no seu corpo àquele momento, Jeff violentamente pega no comando da televisão e puxa o botão de ligar para baixo, com uma brutidade monstruosa. E assim, a televisão desliga-se.
A sua visão volta. A respiração desacelera. Ainda está ofegante, mas está a acalmar-se. O mesmo se pode dizer do seu coração. Os batimentos parecem estar a ficar estáveis.
Jeff: *hunf* *hunf* *hunf*
Tem a respiração mais pesada do que nunca. Ao menos, já se encontra melhor.
Em puro ar de surpresa, Jeff, encosta-se ainda mais naquele sofá e diz, numa brecha do tempo em que não se encontrava a ofegar:
Jeff: "Mas que raio é que se passou?"
Damian encontra-se sentado. Está a olhar para o ecrã do computador. Sinceramente, já lhe está a magoar os olhos. Já não bastava o tempo que passava à frente do ecrã no trabalho, ainda tem trabalho para fazer em casa. Levando isso em conta, passa praticamente o dia inteiro perante o ecrã.
Já para não falar do que viu nesta manhã. O que é que aquele homem estava lá a fazer? Como é que descobriu a sua morada? Ficará Jeff bem?
Tantas perguntas e tão poucas respostas.
Mas chega. Chega de pensar em outras coisas. Podem ser importantes, mas têm trabalho em mão.
Damian passa os dedos pelos olhos, esfregando a mão na cara. Daqui a pouco vai ter é de comprar os óculos com todo este tempo que passa à frente do computador,
Os escritórios da sua empresa são bem característicos de uma região dos Estados Unidos. Isso era já bastante previsível, tendo em conta que Damian é um cidadão de Flórida, com escritório também em Flórida (e a uma grande distância de casa).
O espaço de trabalho é que pode parecer esquisito para um trabalhador comum. Depois daquele corredor com paredes, chão e teto de madeira que parece estar desgastada, fica a zona de trabalho. Cada funcionário tem o seu cubículo de madeira. É estreito e pequeno. Sim, mas ao menos é um pequeno escritório que permite trabalhar em tranquilidade.
Quanto ao trabalho...pois...pode-se dizer que existem poucos que ali estão realmente para trabalhar. Hoje de manhã ao entrar já viu pelo menos 5 pessoas a jogar videojogos em consolas que secretamente trazem de casa. Aquele é um jornal ainda pouco conhecido e que não paga muito bem. Grande parte das pessoas que lá trabalham sabem disso e por isso não querem fazer muito. O seu esforço não vai ser compensado e ainda receberão uns tostões se não forem descobertos pelo chefe.
A estratégia deles limita-se fingir trabalhar durante grande parte do dia e com isto quero dizer jogar, ouvir música nos seus aparelhos de mp3 e procrastinar. Sempre que alguém for inspencioná-los (normalmente é a secretária quem o faz) abrem um documento de uma notícia que estão a trabalhar há quase dois meses e colocam essa farça até o inspetor passar. Depois disso voltam à procrastinação e de vez em quando lá abrem o documento novamente para colocar aquelas três ou quatro frases diárias para o chefe não suspeitar.
No entanto, é claro que o Diretor do jornal suspeita. Ele é tudo menos burro. Até me atrevo a dizer que esse tal de Diretor é uma das pessoas mais inteligentes que Damian já conheceu. Claramente, ele iria se aperceber que os seus trabalhadores andavam com ritmo de trabalho demasiado lento. Quer dizer, quando estes começam a entregar notícias de dois em dois meses (se tiver sorte) e demoram tanto a fazê-las que se tornam datadas é no mínimo estranho. Logo devem perguntar-se: porque é que ele não os despede? Bem...
Damian trabalha num jornal, o "The Right". Trata-se de um jornal pouco conhecido. Recentemente, o nome tem começado a passar de boca em boca, mas ainda não é o suficiente para tornar o "The Right" famoso.
Ainda assim, o seu chefe dá de tudo para tornar este jornal no melhor e mais conhecido do mundo. Mas esse é um processo que parece estar longe de acabar. Há um longo caminho pela frente até ter o jornal dos seus sonhos e a primeira coisa seria livrar-se destes trabalhadores que andam por aí a preencher espaço. Volta a entrar a pergunta: porque é que ele não faz isso?
Sinceramente...ninguém sabe. Apenas o Diretor deve saber. Ele tem as suas razões e com a imponência que tem e poder que transparece ninguém tem coragem para lhe falar qualquer coisa que seja quanto mais fazer-lhe perguntas de tamanha importância. É melhor deixar de pensar nesse tipo de coisas e meter-se no seu trabalho...
Damian está mesmo cansado. Está desde ontem a tentar completar um artigo sobre o desaparecimento de 3 soldados americanos num deserto do Nevada. Ele pega na pen que tem em cima da secretária etiquetada com o seu nome e insere-a no computador. Abre a pasta e abre também o documento com toda a informação que precisa de saber.
Aquele caso cheira mesmo a queimado. Consegue mesmo jurar que ali há gato. Mas tinha razão. Havia tão pouca informação. Nem sabe como é que o seu chefe, Daniel, conseguiu encontrar este acontecimento.
As coisas no "The Right" também funcionam de maneira diferente. Como é que digo isto...bem...o escritório é um pouco precário...eles...bem...não têm internet. Sim, eu sei. Isso é inconcebível. Por isso, como é que as coisas funcionam? É simples. Em casa, Daniel coleciona as notícias e recolhe todas as infromações possíveis que consegue arranjar sobre elas em documentos Word separados.
Já no escritório, ele passa esses documentos para as pens dos trabalhadores mais adequados para escrever o artigo. Essas pens em questão são deixadas pelos trabalhadores nas suas secretárias e estão lá todos os dias para eles as usarem. O que Daniel faz é chega à secretária de cada trabalhador e pega na pen para passar os documentos que acha mais apropriados para cada. Neste caso, Damian ficou com um artigo muito esquisito.
De qualquer forma, se quer fazer um bom artigo, precisará de informação. Bem sabe que pode simplesmente mentir e criar uma notícia falsa, mas isso não é do seu estilo. Tem a certeza que esses tais trabalhadores que não fazem nada optariam por isso. Ao menos sempre cocluíam o artigo. Em outras palavras, faziam tudo por fazer, mesmo que ficasse às três pancadas. Mas Damian não. Ele não é como esses.
Leva sempre qualquer trabalho a sério. Não que seja perfecionista, mas sente-se sempre obrigado a dar 100% de si. Ok, 100% talvez não seja apropriado. Damian dá mais de si. Ele dá 110% de si em cada coisa que faz.
Porquê? Bem, este é o único emprego que conseguiu com o seu currículo. E olhem que ele esforçava-se bastante na época da escola. Tirou um curso em Humanidades e era um aluno de excelência. Sempre teve um problema: o dinheiro. Foi isso o que o impediu a ir além nos estudos. Senão tinha tirado um mestrado e tudo isso. Estaria num lugar melhor.
Acho que estão a compreender as suas razões. Com o seu currículo este foi o único emprego decente que correspondesse com as suas capacidades e gostos. Por isso é que o valoriza tanto mesmo o pagamento não ser dos melhores. Contenta-se só por ter este emprego que o permita sustentar o seu filho e sabe que não conseguirá melhor.
Essa é a razão para dar de tudo neste trabalho tão desvalorizado. É por isso que ele agora se importa tanto com este artigo aparentemente insignificante e que apresenta tantos furos. Isso explica porque é que ele apresenta tanto interesse nisto tudo. Sim, é por isso que ele agora anda a mexer nos arquivos que lhe foram dados à procura de mais informação. À procura de alguém que lhe possa dar mais informação.
Que saiba não ouviu nada nas notícias da manhã sobre algum incidente no México ou sobre uma operação militar americana para lá. Sente-se obrigado a tomar estas questões para si. É, tem quase a certeza que o Diretor não saberá muito mais. Vai tentar, mas vai de esperanças moderadas. Quem lhe vai ajudar mais será uma pessoa que estebe de certa forma envolvida na situação. Olhando para os nomes vê que não tem muita escolha...
Só existe um envolvido no caso que ainda se encontra vivo. Damian olha os papéis que tem na mesa e aponta para o nome da pessoa:
Capitão Tren. Se não tem informação, terá de a sacar a alguém. A pessoa em questão parece ser o indivíduo ideal. Afinal, ninguém deve saber mais sobre a missão do que a pessoa que enviou os três soldados.
Damian levanta-se da cadeira almofadada preta. Fica com as paredes do cubículo à altura da cintura. Quando estava sentado, as paredes pareciam mais altas. Ele pega no casaco preto que deixou na cadeira e veste-o. Antes de sair, ele ajeita a gravata e só nesse momento é que sai do seu cubículo.
Só precisa de ir falar com uma pessoa antes de partir para uma entrevista: o Diretor.
Passando por entre os cubículos, corredores e esquinas. Só depois desse percurso é que chega ao local pretendido.
Na porta está escrito numa placa dourada suspensa: "Diretor". Aquelas letras são suficiente para impor respeito a qualquer funcionário do "The Right". Embora Damian escondesse bem os seus sentimentos, lá dentro também sentia algo a deixá-lo nervoso.
*Prum*
Inesperadamemte sai de lá um homem. A porta abre-se e rapidamente e volta a fechar num piscar de olhos. Sai de lá um senhor. Alguém que acha que nunca viu antes. Tem estatura média, um homem branco de olhos castanhos com rosto repleto de sardas junto à zona do nariz e, à direita do seu queixo, tem a marca de um corte. Vestindo um fato azul escuro com uma gravata preta e umas calças azúis escuras o homem não parece querer que alguém o veja.
E ele vem mesmo rápido. Como se algo lá tivesse acontecido que o deixou triste e ele estivesse a sair dali com vergonha. Provavelmente O Diretor deu-lhe uma bronca. Algo que, segundo sabe, é bastante comum.
Caramba. A reputação que este Daniel tem é mesmo má. E di-lo por experiência. Trabalha aqui há anos e só ouve coisa má dele. Esta é a primeira vez que vai ao escritório dele. Também porque esteve a evitar este momento precisamente para não passar pelo mesmo que o homem que lá acabou de sair frustrado.
Agora nem sabe se quer mesmo entrar. Pensando bem, ainda vai a tempo de desistir...ou não? Já é tarde demais. Está literalmente à porta e vai desistir? Pode esquecer isso.
Tem é de se acalmar. Deixar de pensar nos seus .edos e preocupações. Isso inclui aquele tipo que viu de manhã. Isso e outras coisas. É isso mesmo. Relaxar. Descontrair e abrir. Não pode ser assim tão mau. Daniel não pode ser assim tão má pessoa.
Reunindo alguma coragem e limpando a sua mente dos acontecimentos da manhã, ele bate à porta.
*Pompompom*
Diretor: "Entre!"
Grita o seu chefe de dentro do escritório. Usando aquela mera palavra como confirmação, Damian entra.
O escritório está bem iluminado. Os estores foram levantados, deixando a luz temporária do sol entrar. Daqui em pouco começará a chover, deixando o céu nublado. É melhor aproveitar a luz solar enquanto se pode.
Damian: "Com licença, Daniel."
Daniel: "Gosto da tua informalidade, mas ainda prefiro que me trates por Diretor."
Damian: "E-Está bem, Diretor."
Diz ele, hesitantemente.
Outra pessoa se encontrava na sala. Temos Daniel Dare, o Diretor, sentado na sua mesa almofadado e a olhar para o seu computador de topo. No entanto, ao seu lado, estava alguém. Em pé, à esquerda do Diretor, estava uma mulher. Damian não esperava a sua presença naquele momento.
Damian: "Olá, Sarah."
Salutou a mulher, nervosamente. O seu comportamento perante ela era diferente.
Em resposta, a mulher, Sarah, de minissaia e vestido apertado, levantou a sua mão, dizendo-lhe um "olá", sem proferir uma única palavra.
Daniel: "O que te traz aqui?"
Pergunta Daniel, numa voz séria, ao mesmo tempo que ajusta os seus óculos.
Damian: "Queria falar sobre o artigo que me deu. Aquele que colocou na minha pen ontem."
Daniel: "O que é que tem de mal? Sabes que eu coloco sempre toda a informação que posso nesses documentos Word. Aqui não há internet, por isso tenho de fazer a recolha de informação toda em casa. Acho complicado isso acontecer, mas, diz lá: qual é o problema?"
Damian: "Bem, eu simplemente não tenho informação suficiente."
Daniel: "Ai sim?"
Pergunta, visivelmente desinteressado, enquanto escreve no computador.
Damian: "Senhor, não sei se está a compreender o que estou a dizer."
Sarah começa a olhar para Damian com um olhar de quem acabou de dizer a maior parvoíce. Estava mesmo prestes a dizer algo, mas Daniel intervém primeiro. O Diretor até tira as mãos do teclado e foca as atenções no funcionário que se encontra em pé. à sua frente.
Daniel: "Está bem. Diz-me lá o que realmente pretendes contar-nos. E deixa de contornar o assunto."
Diz, percebendo que Damian queria dizer algo de importante.
Foi descoberto. Daniel é bastante inteligente. Não seria idiota dizer que o Diretor conseguiu ler a sua linguagem corporal e deduzir o que estava a esconder.
Bem, acho que chega de andar às voltas. Vamos direto ao assunto.
Damian: "Diretor, creio que a informação que me deu não é suficiente para fazer um artigo digno do nome deste jornal. Como tal, queria pedir-lhe permissão para investigar mais um pouco, apenas caso não tenha mais nada para me fornecer que possa se revelar útil."
Uma boa escolha de palavras. Especialmente, tendo em conta que formulou esta longa frase em segundos. Foi um completo improviso. Até Daniel se apercebeu disso.
Sarah estava bastante impressionada. De boca aberta, mostrando o quão incrédula estava. Não sabia que Damian conseguia articular um discurso assim tão bem.
Daniel: "Se era isso que querias podias ter me contado mais cedo."
Informa, com um leve e malvado sorriso no rosto. Sarah fica ainda mais incrédula com a resposta. Ainda vai acabar por explodir de tanta surpresa.
Daniel: "Por acaso, não tenho muito a dar. E tens razão. É uma notícia mesmo esquisita. Sabe-se muito pouco sobre o incidente, segundo a pesquisa que tinha feito em casa. Estava até um pouco receoso em passar-te toda a informação no documento Word para alguém, mas fui um pouco teimoso. Respeito essa tua preocupação por querer sempre o melhor. Queremos esse tipo de pessoas aqui no 'The Right'. Continua assim."
Damian ficou aliviado pela resposta. Sarah também, embora não soubesse o porquê. Não é como se gostasse do tal de Damian, mas sentia uma felicidade ao vê-lo suceder.
Daniel nunca é assim. É estranho vê-lo a ser tão compreensivo e pouco irritadiço. Uma surpresa agradável.
Daniel: "Mas, afinal, como pensas em conseguir essa informação que tanto queres?"
Damian: "Bem, no documento em que me deu, listavam os nomes dos envolvidos no caso. Quase todos se encontravam mortos, é verdade, mas dois estavam vivos. Temos o Danic que era piloto, contudo não é esse que me interessa mais."
Daniel: "Referes-te ao Capitão Tren."
Damian: "Correto. Ele ainda deve estar a operar na mesma instalação militar."
Daniel: "Realmente, não é um mau raciocínio."
O Diretor une as mãos e pondera numa decisão, com calma, embora já estivesse praticamente decidido no que dizer. Passado uns segundos, estavam Sarah e Damian a observarem atentamente para Daniel quando o mesmo, subitamente, desune as mãos e assenta-as na secretária.
Daniel: "Parece-me bem. E tu, Sarah?"
Não estava à espera de ter que intervir. Mas, como a boa secretária que é, cumpre as ordens.
Sarah: "Ah, p-por acaso partilho da sua opinião, Diretor."
Daniel: "Então estamos decididos. Damian, podes partir quando quiseres. Só deve haver um problema..."
Daniel já está a prever o que Damian perguntaria.
Damian: "Pois bem...eu não tenho carro e o destino ainda é longe."
Daniel: "Vais precisar de uma boleia. Ainda bem que aqui está alguém para te ajudar."
Fala, virando o olhar para Sarah, à sua esquerda.
A própria secretária entendeu o que é que Daniel pretendia. Já não é a primeira vez que lhe pedia algo do género.
Daniel: "Sarah, como a boa secretária que tu és, importas-te de dar boleia ao Damian?"
Sarah: "Não tem problema. Já lhe entreguei tudo o que pretendia por hoje."
Daniel: "Muito bem."
Daniel coloca a mão no bolso e de lá tira umas chaves presas a um pequeno comando.
Damian: "Isso..."
Daniel: "São as chaves do meu carro."
Daniel estende a mão direita para Sarah, segurando as chaves.
Daniel: "Sinto que não te preciso de dizer isto, mas tem cuidado com elas."
Sarah pega nas chaves, sem hesitar e diz:
Sarah: "Prometo."
Assim, a secretária dirige-se à entrada do escritório.
Sorrindo, ela ordena:
Sarah: "Damian, faça o favor de me seguir."
Pede, abrindo a porta.
Damian até lhe ia dizer algo, num tom de brincadeira, mas decidiu deixar piadas e conversas pessoas fora daquele escritório. Como tal, decide simplesmente segui-la.
Os dois saem do escritório. Como Damian é o último a sair, é o responsável por fechar a porta. E é isso que faz.
*Porom*
Suavemente, ele fecha a porta, com as costas viradas para trás. Na divisão só ficou Daniel. Ainda tem alguma papelada por tratar. Mesmo assim, não consegue parar de pensar naqueles dois. Conseguiu ver que eles eram mais próximos do que aparenta, por muito que tentassem fingir.
Ainda por cima aquele Damian...não esperava que ele fosse aquele tipo de pessoa. Sabe das trágicas circunstâncias que o envolvem e, como tal, esperaria que fosse alguém depressivo e que não quer saber de nada. Mas lá está ele. A dar o seu melhor na vida, até no trabalho. É alguém mesmo intrigante.
Daniel: "Damian...que pessoa curiosa..."
Comenta para si próprio, antes de voltar ao trabalho.
Iam os dois no carro. Damian e Sarah. A mulher ia ao volante, o homem como passageiro ao lado do condutor. Estavam num carro bom. Não é um descapotável de uma marca cara, mas é bastante veloz e dá para o gasto.
Damian: "Já alguma vez andaste no carro do Daniel antes?"
Sarah: "Não vale a pena esconder, não é?"
Damian: "Pela forma como falou, não parece ser a primeira vez que te dá as chaves do carro."
Sarah: "Também não sabia que eras tão bom observador."
Comenta alegremente , sem tirar os olhos da estrada.
Damian: "Quer dizer, posso não ser tão inteligente quanto o Daniel, mas sei umas coisinhas."
Sarah: "Realmente, tu és um dos trabalhadores mais velhos daquele edifício."
Damian: "Olha que tu também não és lá muito nova."
Sarah: "O quê?"
Exclama exaltada, interpretando o que Damian disse como um insulto. Quase que se desvia do caminho com o exalto.
Damian: "Tem calma! Se ficares toda irritada ainda vamos bater."
Um conselho sensato. De momento, encontravam-se na estrada de uma cidade. Passavam pelas moradias, cafés e lojas. Por sorte só estava um carro à frente deles. Raramente vinha um carro do lado contrário.
E ainda bem.
Sarah: "Cá para mim tu é que andas a exagerar. Desde quando é que posso ser considerada velha?"
Damian: "Está bem, está bem. Tu encontras-te nos teus 30 anos e eu, bem...nos meus 27."
Diz, pretendendo acalmá-la.
Sarah: "Com que então admites. Vês, ainda sou relativamente nova."
Damian: "A diferença de idades entre nós os dois não é assim tão grande..."
Comenta, baixinho, de uma extremidade da boca.
Sarah: "Disseste alguma coisa?"
Damian: "Nada."
Com isto, ele desvia-se das consequências. Nem é mau ator afinal.
Por uns breves momentos, a conversa pausa. Sarah concentra-se completamente na condução. Damian olha para a paisagem que passa. Também não pode ser considerado paisagem. É uma zona urbanizada e repleta de lojas. Precisamente tudo menos natural.
Vai entrevistar alguém e não tem ainda as perguntas preparadas. Quer dizer, sabe o que tem de lhe perguntar, mas não consegue formular os pensamentos em frases.
Sarah: "Sabes que mais? Não pensava que eras tão dedicado ao trabalho. Sabia que era e és muito melhor quando comparado com aqueles incompetentes que ficam a ouvir música, mas fazer este esforço todo por um artigo...não fazia ideia que era assim tão trabalhador."
Damian: "Para ser sincero, nem eu."
Responde, sem tirar os olhares da janela.
Sarah: "Dizias que farias qualquer coisa por dinheiro."
Damian: "E faço, mas há limites."
Sarah: "Elabora."
Damian: "Bem sabes tu o peso que carrego aos meus ombros. Já não bastou o passado e as dores que guardo cá dentro, ainda tenho de sustentar a casa e de me alimentar a mim e ao meu filho."
Sarah: "Pela maneira como falas parece um inconveniente."
Damian ri-se levemente. Sabia que Sarah estava ciente da realidade, mas estava a tentar torná-la mais leve.
Damian: "Mas não. Tu sabes melhor do que ninguém que faria de tudo para manter o Jeff a salvo."
Sarah: "As coisas que tu sacrificas pelo teu filho..."
Parecia que ia dizer algo, mas para. A curiosidade de Damian sobe em pico.
Damian: "O quê?"
Pergunta, curioso.
Sarah: "Não é nada, é só que..."
Damian: "Desembucha!"
Ordena como se fosse uma mãe a retirar informação ao seu filho. Talvez esta mania tenha vindo das suas experiências como pai.
Sarah: "Apenas não consigo evitar-me de pensar e admirar o quão bom de uma figura parental és."
Damian: "Bem, o-obrigado."
Agradece, corando com o elogio.
Sarah: "Acredita, pode não parecer, mas pais como tu são difíceis de encontrar."
Diz, seriamente.
Ela parece divagar. A sua mente aparenta começar a lembrar-se de eventos passados. Provavelmente, eventos que gostaria de esquecer. Lá está algo que os dois têm em comum.
Damian percebe que Sarah também possui feridas causadas pelo passado. Essa é uma dor que ambos possuem, mas por razões diferentes.
Ainda assim, Sarah continua a conduzir, focando todas as suas atenções na estrada. Brevemente, chegarão ao destino. O céu está a escurecer. Já não é possível ver o sol. O silêncio entre os dois tornava o clima mais pesado.
Embora não fosse proposital, algumas palavras escapam da boca, enquanto olha para o nublado e escuro céu:
Damian: "Todos passaram por maus bocados. Por muito que os tentemos esquecer, o nosso coração relembra-nos. Essas são as feridas que nunca nos deixarão."
Sarah olha para o céu, sempre com as mãos no volante. O céu também a parece tornar mais melancólica. Não quer chorar, mas torna-a mais sensível. Ainda assim, é uma vista que lhe levanta perguntas quanto ao futuro, o futuro que ainda está por vir.
Sarah: "Pois é, tens razão. São feridas passadas."
Damian: "E ainda assim elas permanecem...de maneira tão colada que..."
Ele tira os olhos da janela e olha para o retrovisor.
Damian: "Parece que nos define."
Sarah fica com um olhar diferente. Como se aquela frase não tivesse sido bem processada. Ou mais que ela viu algo a mais ali.
Pode ter sido só impressão sua. Um palpite idiota que não tem fundamento por detrás. No entanto, perceptiva como é, isso é bem improvável.
Bem improvável para alguém que conhece o Damian há já algum tempo. A quem o viu nos melhores e piores momentos e este...este momento parece demasiado estranho.
Sarah: "Damian...tu..."
Damian: "Diz?"
Pergunta olhando para ela.
Sarah: "Estás mesmo bem?"
Damian: "Ah, claro. Claro, claro, claro. P-Porque é que não havia de estar?"
Continua, levantando mais suspeitas pela maneira desengonçada como fala que sugere que, por momentos, quase deixou passar algo que não devia e que intrigou a sua colega.
Sarah: "Tens mesmo a certeza? É que não me pareceu."
Damian: "S-Sim, sim. Foi...uma divagação, de facto. E talvez me tenha excedido mesmo, confesso. É que fica difícil com um ambiente assim tão... silencioso."
A secretária não está muito convencida. E parece saber o que se passa. Começando a ficar com suspeitas que a levam a querer fazer perguntas talvez demasiado comprometedoras como esta:
Sarah: "Mas...olha que sd isto tiver a ver com a Maria, podes falar comigo."
Os olhos de Damian ficam vazios por um segundo. A expressão fica ainda mais carrancuda, se é que isso é possível. Ele é relembrado de algo que jurou esquecer.
Sarah até se assustou pensando que Damian ia ficar zangado consigo, porém...esse não foi o caso...
Damian: "A Maria...não. Não te preocupes Sarah que...isso já foi."
Sarah: "A sério? É que se quiseres esclarecimentos eu posso ligar à enfermeira que a foi acudir. E-Eu ainda tenho o número dela e-"
Damian: "Não é preciso, Sarah. Eu...já passei por isso. Já me acostumei a isso. Por muito que tenha sido trágico e inesperado...já passei pelo processo de aceitar o que foi."
Sarah: "..."
O silêncio instala-se. Sarah fica mais reticente e triste. Acreditando que errou ao fazer-lhe a pergunta. Massacrando-se na sua cabeça como uma idiota e estúpida insensível.
Não devia ter falado. E quando estava a pensar nisso...ele fala:
Damian: "Sabes, eu...lembro-me que foi no ano novo quando aceitei. O ano novo que também está quase a chegar. E que sei que será diferente a este que passou."
Sarah fica mais curiosa.
Damian: "Passei o ano com o Jeff. E para variar, por alguma razão, decidi ir à rotunda festejar. Logo um lugar muito cheio, e eu que passava os anos isolados em casa com a família...acho que o que aconteceu me tinha afetado. Me fez querer distrair e...preencher um vazio..."
Lembrando-se das coisas como se elas ainda fossem próximas, ele recorda os detalhes.
Damian: "O clima era algo muito diferente. Repleto de pessoas sorridentes. Copos de vidro com espumante caro das lojas do lado. Afinal, a rotunda sempre foi o centro do capitalismo. Tinha de tudo para todos e eu e o Jeff ficámo-nos por umas passas e ao invés de ir para ao pé do palco que tinham instalado, onde todos dançavam com música, decidimos sentarmo-nos no passeio. Apenas a observar..."
Sarah fica com pena do amigo. Nem imaginava que algo assim tivesse acontecido.
Damian: "E lá ficámos. Sozinhos no espaço mais populado. Em silêncio. Sem saber o que comentar ou dizer uns aos outros. Como duas pessoas abaladas por...uma tragédia inexplicável. Uma tragédia que nos afetou aos dois. Uma tragédia que nos atingiu como...uma bala perdida. Como a mesma que a atingiu."
Sarah: "E então ficaram ali parados?"
Damian: "Não tínhamos vontade para fazer nada. Não queríamos prosseguir daquele ano. Não conseguíamos. E acho que isso era a parte mais triste de tudo: ver o estado em que o ano de 1999 nos deixou. Que era um estado tão mau que nem queríamos imaginar o que o ano de 2000 traria...mas...talvez seja a ironia que senti ao olhar para a paralela felicidade dos outros que...decidi mudar."
A narração ganha um sobretom esperançoso.
Damian: "Foi aí e então que os meus olhos parecem ter mudado. Compreendido que...não é porque coisas más acontecem que devemos deixá-las definir-nos. É. Era essa a coisa que nunc atinha conseguido compreender até então e bastou olhar para aqueles que me rodeavam...irónico. O único problema é que com isto tudo já se tinha dado o ano novo e eu e o Jeff, sem nos apercebermos, já estávamos em 2000. Com a diferença que...eu tinha deixado o meu antigo eu para trás. Já me tinha decidido. Queria ser uma nova pessoa neste ano, queria ser alguém que tinha superado a dor."
Sarah: "E o teu filho?"
Damian: "O Jeff...bem, faz anos amanhã."
Sarah: "Er, ok, boa. Mas referia-me à sua reação."
Damian respira fundo. Sabendo a resposta melhor do que ninguém. Sem saber é como dizer isto. De forma enfeitada e...subtil...
Damian: "Com aqueles balões, festejos e o som interminável do brincar de copos de vidro...as pessoas faziam as suas promessas. Eu fazia as minhas promessas e objetivos para o ano que sinto ter cumprido, da mesma forma que me considero um pai melhor. E...ao olhar para o Jeff...sentado no passeio como eu estava...vi perfeitamente o contrário. Pois enquanto os outros estavam no novo ano.......para ele ainda era 1999."
Jeff sente medo. Está deitado no sofá a tremer. Não treme de frio. O rapaz treme de medo.
Jeff: "O-O q-que foi aquilo?"
Inquire-se, tremendo da cabeça aos pés.
O miúdo rapidamente coloca-se em posição fetal. Nada consegue tirar-lhe aquela imagem da cabeça. Jurava que não era real. Não poderia ser real. E mesmo assim, ali estava.
Aquela figura que apareceu no desenho animado, lembrou-o da figura que o atormenta todas as noites que, por sua vez, recorda-o de...
Jeff: "Raios!"
Grita com raiva.
Os seus olhos começam a ficar mais molhados. A sua garganta parece ser apertada. Começa a piscar. A piscar, a piscar e a piscar sem parar.
Ele pisca e pisca cada vez mais depressa até que...
Jeff: "Porquê?"
Ele começa a chorar. Lágrimas. São lágrimas o que escorre pelo seu rosto. Lágrimas que lhe saem dos olhos e vão cair no sofá, molhando-o.
*Thrump*
O som do trovão ao longe pode ser ouvido por todo o bairro. Um som que transmite a intensidade do estrondo longínquo.
Daqui a pouco, começará a chover. Já quase dá para sentir as gotas que se aproximam.
No entanto, nada disso importa. De momento, nada disso é relevante para Jeff. A sua tristeza é realmente o que mais pode ser sentido.
A tristeza e...memórias da criatura. Aquela maldita figura que o atormenta todas as noites. Como uma doença recorrente que o constantemente perturba. Como...um vírus.
Um vírus.
Derrotado, deitado e sem esperança. O rapaz chora sem parar como um bebé, como alguém incapaz de deixar o colo da mãe. Confessa. Ele tem medo.
Jeff: "Mãe, ajuda-me."
Implora ele aos céus, enquanto uma lágrima escorre do seu olho, passando pela sua bochecha.
Mesmo assim, ninguém o vem ajudar.
Pelo menos, de momento, encontra-se completamente sozinho. Ninguém o vem ajudar, não importa o quanto peça.
Afinal...
*Thrump*
A sua mãe está morta.
O carro para. Depois de uns 20 minutos de condução, finalmente chegaram ao destino.
Sarah: "Já chegámos."
Damian: "Estou a ver que sim."
Comenta, olhando para o ambiente que se encontra fora da viatura.
O céu está escuríssimo. Até parece que a noite chegou e sem estrelas.
À frente do carro parado, está um portão de metal vedado a ser guardado por 2 soldados. Na extremidade direita do portão, está uma pequena cabine com vidros que permitem ver o exterior. É lá onde deveria estar o porteiro.
Sarah: "Só quero ver como é que pensas lá entrar."
Damian: "Normalmente, falaria com o porteiro e mostro a minha identificação, mas..."
Sarah: "Tu não sabes como vais entrar, pois não?"
Damian: "Eu arranjo maneira."
Ele abre a porta, assegurando-se que traz consigo tudo o que necessita, e sai do carro.
Sarah: "Fico à tua espera, por isso não demores."
Damian: "Não prometo nada."
Assim, Damian fecha a porta e vai aproximar-se de um dos soldados. Não tem mais ninguém com quem possa negociar entrada senão aqueles oficiais armados.
O escritor do jornal chega ao pé de um daqueles altos homens que se encontram a guardar aquele grosso portão de metal.
O soldado segura uma metralhadora e não aparenta demonstrar alguma humanidade lá dentro.
Damian: "C-Com licença?"
Pergunta, nervosamente.
O soldado não responde, mas os seus olhos focam a sua atenção naquela pessoa. Este soldado é bastante alto. Damian não consegue parar de se sentir intimidado com alguém tão alto e imponente à sua frente.
Soldado: "Quem é?"
Pergunta o soldado, sem gaguejar.
Uma voz tão forte que transmite superioridade. Damian sente-se cada vez mais fraco. Ainda assim, ele tenta concluir o seu objetivo.
Damian: "Eu sou Damian Mindler."
Informa, seriamente e sem gaguejar. Está a tentar imitar a postura do soldado e nem está a correr mal.
Damian tira a carteira do bolso do casaco. Abre-a e de lá tira um cartão.
Damian: "Como pode ser visto na minha identificação, sou um escritor de artigos no jornal 'The Right'."
Diz-lhe, escondendo o orgulho e empolgação que sente ao mostrar quem é.
Quando entrou no emprego, Daniel bem lhe tinha dito: "Embora eu não recomende, se quiseres fazer alguma investigação e recolha de informação, mostra isto ao pessoal. As autoridades perceberão que não têm jurisdição e simplesmente farão um comentário rude."
E não é que ele estava certo.
Soldado: "Estou a ver. Bem, podes passar."
O soldado vira-se para o seu colega a uns metros de si e da cabine.
Soldado: "EI!"
Grita-lhe com o objetivo de atrair a sua atenção.
Outro soldado: "DEIXA-ME ADIVINHAR! O PORTÃO!"
Continua a conversa aos gritos.
Em resposta, o soldado simplesmente acena com a cabeça. Diz tudo o que é preciso sem alguma palavra.
Outro soldado: "Tch, tenho sempre que ser eu."
Resigna, para si mesmo a um tom de voz médio. No entanto, ninguém o vai escutar.
Ele dirige-se até à cabine.
Enquanto esperam que o soldado clique nos botões necessários e que o portão se abra, o soldado, curioso com a presença de Damian, pergunta:
Soldado: "Raramente vêm aqui pessoas como tu."
Damian: "P-Pois."
Fala inconscientemente, como se o cérebro assim tivesse decidido para não deixar o homem sem resposta. Nem sabe o porquê de ter escolhido a palavra proferida.
Soldado: "Tenho as minhas suspeitas, mas importas-te de dizer o porquê de teres aqui vindo?"
Esquisito, mas Damian acaba por ceder ao pedido, apercebendo-se de que, não o fazer pode trazer problemas. E Damian não quer problemas com um tipo que veste um colete à prova de bala e segura uma metralhadora.
Damian: "De momento, estou a escrever um artigo sobre o desaparecimento de três soldados num deserto do Nevada, julgo que já ouviu falar."
Isto foi o necessário para o soldado perceber o que ele queria.
Soldado: "Não precisas de me dizer mais nada. Vieste entrevistar o capitão, correto?"
Damian é apanhado desprevenido. Não estava à espera que o soldado descobrisse tão rapidamente.
Damian: "S-Sim, é verdade."
Soldado: "Ele é um dos únicos envolvidos com a missão que ainda se encontra vivo, por isso, torna-se óbvio saber o que queres."
Subitamente, o portão começa a abrir-se. Não demorou assim tanto tempo. Também, não poderiam ficar a falar para sempre.
Soldado: "Estava a ver que nunca."
Comenta.
Soldado: "Boa sorte com essa recolha de informação, vais precisar."
Damian: "O-Obrigado."
Agradece, mesmo sem ter percebido porque é que seria necessário sorte para uma conversa com o capitão Tren. Em poucos segundos, o portão fica totalmente aberto.
Soldado: "Vai sempre em frente. Quando alcançares um posto de treino, virá à direita. O capitão Tren deve estar lá."
Damian: "Entendido."
Então, Damian dirige-se para dentro da instalação, usando as palavras do soldado como mapa.
A base militar estava bastante movimentada. Carros militares passavam de um lado para o outro. Alguns soldados e recrutas perambulavam pelas instalações.
Parece que estavam a recolher tudo o que pudessem. Afinal, ia começar a chover.
Damian: "Presumo que seja aqui."
Ele dá o primeiro passo na entrada do que parece ser um centro de treino. Os cacifos dão esse aspeto ao local Mas parece ser um treino físico.
Damian passa pela zona da entrada repleta de cacifos e de bancos e vai até ao centro do local. É daí que vem a maior parte do barulho.
Voz: "Toma esta!"
Voz mais velha: "Demasiado frouxo."
Com certeza estava a haver um combate. Uma luta entre alguém mais velho contra um oponente mais novo, segundo as vozes ecoadas por toda a instalação. Provavelmente era um treino de combate corpo a corpo.
O escritor do jornal vira a esquina e compreende totalmente o que se está a passar.
Soldado mais novo: "Raios partam!"
Soldado mais velho: "Resmunga menos e luta mais!"
Soldado mais novo: "Entendido, senhor!"
Damian observa o acontecimento à distância. Só não esperava que fosse tão brutal.
Os dois lutam em cima de um tapete azul. Ambos vestem uma t-shirt verde escura e umas calças cargo. A sala em si é uma mistura entre azul e vermelho. Parece um dojo de karaté. Não que Damian alguma vez tivesse ido a um.
Soldado mais novo: "Saca só!"
Diz, ao mesmo tempo que dá um soco no adversário mais velho.
Soldado mais velho: "Só isso? Dá-me com mais força!"
Ordena, defendendo-se do soco com a maior facilidade. O soldado mais velho era claramente superior ao mais novo. Não só em patente, mas também em habilidade.
Damian acabou de chegar e consegue claramente perceber quem é o lutador superior.
Nunca soube lutar. Nunca quis lutar. Mas aquela luta...
A luta que estava a observar relembrou-o do evento da manhã.
Será que precisará de lutar? Precisará de deferir golpes em outros humanos para defender o seu lar e o seu filho? Aquele homem...será ele o seu próximo oponente?
Rapidamente, pensamentos do género escapam-lhe da cabeça, pois a luta perante os seus olhos intensificou-se. Intensificou-se a um ponto que fica difícil ignorar.
Soldado mais novo: "Ah!"
O soldado mais velho acabou de acertar uma forte cabeçada no adversário. Como resultado, o jovem dá uns passos para trás e começa a sangrar do nariz. Deve estar mesmo a sofrer. Até Damian sentiu aquele golpe.
Soldado mais novo: "Para que foi isso?"
Soldado mais velho: "Num combate real, o inimigo não terá pena. Ele vai entrar para matar. Quero que saibas isso."
Soldado mais novo: "Ok, mas era preciso pôr-me a sangrar do nariz?"
Soldado mais velho: "Para mas é de reclamar."
Neste instante, o adulto nota na figura do escritor.
Soldado mais velho: "Vamos parar. Pausa de 20 minutos. Afinal, tenho visitas."
O jovem também nota na presença de Damian e, seguindo as ordens do seu superior, ele sai da região com os tapetes azuis de combate.
Soldado mais novo: "Eu deixo-vos a sós."
Diz, ao deixar a sala. Assim, o adulto e Damian ficam sozinhos naquela sala.
O soldado à sua frente parece ter uns 50 anos. Cabelos grisalhos e olhos verdes que coindizem com o seu uniforme.
Soldado mais velho: "Não és daqui, pois não? O que é que queres?"
Interroga o visitante, enquanto verifica o estado dos seus punhos. Aparentemente, não tem ferimentos nas mãos.
Damian: "Eu estou à procura de alguém."
Soldado mais velho: "E porquê?"
Damian saca do cartão de identificação da carteira e mostra-o ao soldado, embora o mesmo esteja a uma distância considerável de si.
Com o objetivo de ver melhor, o adulto aproxima-se do escritor do jornal. Eventualmente, ele para, ficando a 1 metro de Damian.
A pressão aumenta. A aura que este soldado emana é mais forte do que o da entrada. Porque é que todos os militares têm que ser tão assustadores?
Soldado mais velho: "Damian do jornal 'The Right'."
Damian: "Sou escritor de artigos."
Soldado mais velho: "E o que te traz aqui?"
Damian: "Bem, procuro o capitão Tren."
Ouvindo o nome, o soldado ri-se ligeiramente e depois diz:
Soldado mais velho: "Veio ao local certo."
O escritor do jornal rapidamente percebe a razão desta reação tão inusitada.
Damian: "Espere um pouco, você é-"
Tren: "Capitão Tren, prazer."
Interrompe o soldado mais velho.
A sua identidade foi revelada. É ele. O homem está mesmo à sua frente.
Damian até se sente surpreso com a revelação. Sempre pensou que fosse mais novo, mas isso não importa. A pessoa por quem tem procurado está mesmo à sua frente. Só precisa de lhe fazer as perguntas. Pois é, as perguntas...as perguntas que ainda não criou.
Tren: "Do que é que precisa?"
Damian: "V-Vejamos, eu estou a escrever um artigo sobre algo de que já deve estar muito bem ciente."
Tren: "É sobre o quê ao certo?"
Pergunta, com um olhar mais sério e apreensivo quanto ao que virá.
Este olhar não ajuda nada. Damian que já estava nervoso, agora, sente que está com halteres nos ombros. O entrevistado também não está a ajudar mesmo nada. Mas Damian dá o seu melhor e tenta superar este medo.
Damian: "Estou aqui para saber mais sobre o desaparecimento de três soldados no deserto do Nevada. O senhor foi quem os enviou naquela operação. Sendo o único envolvido que ainda se encontra vivo, gostaria que me desse mais detalhes, se possível."
Linguagem bastante formal. Damian consegue safar-se bem quando sob pressão. Já não é a primeira vez que o mostra nesta história.
Rapidamente, o olhar do capitão muda. A sua expressão indiferente transforma-se num sorriso. Uma reação estranha. Porque é que ele sorri de uma tragédia? Estarão a falar do mesmo incidente?
Tren: "Podias ter dito mais cedo."
Tren sai da região de onde está Damian e dirige-se até à entrada.
Tren: "Não te preocupes, eu não fujo. Vou só me refrescar."
Informa, pensando que Damian pensaria outra coisa.
Sabendo disso, Damian segue Tren até ao local onde ele já se encontra: a entrada.
Tren abre o seu cacifo e tira uma garrafa de água.
Damian chega nesse momento. Por perto, está o soldado mais novo, sentado num banco a descansar. Bem sabe Damian que ele está a aproveitar para ouvir a conversa. Mais vale ignorá-lo.
Tren começa a beber da água. O treino não foi lá muito cansativo, mas não custa hidratar.
Damian: "Eu tenho algumas perguntas para si. Importa-se de as responder?"
Informa quando o capitão está a engolir aquelas quantidades exorbitantes de água.
Tren tira a garrafa da boca e olha para Damian com um ar de alguém que está a pedir desculpa.
Tren: "Sinto muito, mas sei tão pouco quanto tu. Eu simplesmente enviei os três para a missão e, no fim..."
Ele pausa antes de continuar. Damian sabe a conclusão. Não é preciso dizer. Só o soldado mais novo é que fica mais confuso. Ele não sabe a que Tren se refere.
Damian: "Espere, por acaso, sabe aonde os enviou?"
Tren: "Supostamente, havia atividade terrorista neste deserto. Os miúdos eram habilidosos. Falo por experiência, afinal, fui eu quem os treinou. Ensinei-lhes tudo o que sabia e aprendi na guerra. Eram boas pessoas, por isso queria dar-lhes o melhor. Devo admitir, eles eram mesmo bons. O Giovanni, o Lucas e principalmente o Billy. Foi esse o que mais me feriu ao receber a notícia."
O capitão começa a relembrar-se dos acontecimentos como se fosse ontem. Nos seus olhos, são visíveis tantas emoções. Dor, angústia, perda e culpa.
Tren: "Não sei o que aconteceu. Talvez os terroristas tenham sido demasiado fortes ou então...eles foram demasiado fracos."
Lá no fundo, Tren culpa-se pela morte deles. Foi ele quem os treinou. Ensinou-lhes tudo o que sabia e, mesmo assim, não foi o suficiente. A culpa foi do mentor que não lhes ensinou o suficiente.
O soldado mais novo percebe a razão do comportamento do capitão. Ele percebe finalmente o porquê de ele ser tão duro nos treinos.
Damian: "Sinto muito pela perda."
Lamenta Damian, percebendo que o capitão realmente sentia a perda no fundo do seu coração.
Os olhos do capitão Tren estavam secos. Não é a primeira vez que alguém que já treinou morre. É assim a vida de um soldado. Repleta de perda e tristeza.
Tren: "Isto já passou."
Diz, recompondo-se.
O capitão coloca um sorriso, estranhamente. Ainda mais esquisito, parecia um sorriso genuíno. Não era forçado. Mas no que é que ele está a pensar? Os seus companheiros morreram. Porquê tanta felicidade?
É então que, sorrindo, Tren olha nos olhos de Damian, sem qualquer tristeza ou malícia e diz-lhe, alegremente:
Tren: "Não lamentes a minha perda. Eu já a superei."
Esta frase foi calaramente ouvida por Damian e pelo outro soldado que ouvia atentamente todas as palavras da conversa.
Damian: "Como?"
O escritor do "The Right" ficou sem compreender aquelas palavras. Não porque não queria compreender, mas porque simplesmente não conseguia mesmo. Aquela filosofia, aquele modo de viver era tão diferente do seu.
Tren pousa a garrafa no banco de limpa a boca, passando o braço.
Não consegue perceber a confusão. Uma filosofia que para ele é tão simples e boa.
Tren: "Há algo de mal?"
Damian: "Não me cabe na cabeça como é que o capitão pode estar feliz. Os seus alunos morreram. Tem noção disso, certo?"
O capitão é apanhado de surpresa. O mesmo tipo que há uns segundos estava claramente intimidado agora está a confrontá-lo.
Até Damian perdeu o nervosismo. Parece que as palavras proferidas pelo capitão Tren conduziram a conversa para um lado muito mais pessoal, onde as formalidades não são necessárias.
Tren: "Sabes que mais, és mesmo um cobarde."
Damian: "Hã?"
Foi um comentário surpresa que apanhou o escritor e até o soldado que lá se encontrava desprevenidos.
Tren: "Mesmo assim, quando o assunto fica pessoal, deixas o medo e o nervosismo de parte. Eu não te conheço, nem sei pelo que passaste, mas até alguém como eu que não é especialista em comportamento corporal é capaz de perceber que toquei num assunto em que não devia."
Realmente, contra factos não há argumentos.
Damian: "Até me fazes lembrar de alguém que eu conheço com esse tipo de suposições."
Foi uma clara referência a Daniel que é muito inteligente e é capaz de ler alguém como se fosse um livro. Contribuiria mais para a sociedade se fosse médico ou psiquiatra. Não sabe mesmo como é que ele acabou como Diretor de um jornal de não lá muito famoso. É uma figura mesmo misteriosa.
Tren: "Presumo que seja um elogio."
Conclui, coçando os braços.
Damian: "Voltando à conversa, sim, tocaste num assunto pessoal."
Informa, num tom de voz mais sério e agressivo.
Tren: "E então? O que vais fazer? Bater-me?"
Damian: "Longe disso, se o fizesse perderia o meu trabalho. Isso não arriscaria por nada."
Tren: "Se assim o é, o que é que te fez olhar-me mais seriamente?"
Damian: "O facto de não te ficares feliz, mesmo com tanta morte que te rodeia, mesmo com a morte de três dos teus pupilos."
Tren: "Nunca disse que estava feliz. Para ser sincero, até estou triste. Se ao menos tivesses ideia do que o meu coração aqui está a passar..."
Damian: "Digo já que o exterior não transparece esse sentimento."
O capitão percebe que o escritor defende um ponto de vista diferente do seu. Não é que tenha muito interesse em debates, mas a curiosidade vence-o sempre.
Tren: "Tu tens uma opinião diferente da minha. Até isso eu sei. Por isso, chega de andar às voltas, diz-me o que pensas."
Damian engole em seco.
A conversa derivou um pouco. Só agora é que se apercebeu desse facto. Mas já que chegou até este ponto, mais vale ir até ao final.
Então, com a voz firme, imponentemente, Damian explicita a sua filosofia:
Damian: "A vida e a morte são fases inevitáveis pelas quais qualquer um passará. Se eu te fosse perguntar quando é que alguém morre, tu provavelmente dirias que é quando ele é baleado ou esfaqueado até à morte. Mas não podias estar mais errado. As pessoas não morrem aí. Elas ficam conosco. Podes não conseguir vê-las ou senti-las, mas elas permanecem vivas. Desde que não te esqueças do tipo de pessoa que foram e do legado que cá deixaram, as pessoas não morrem."
Como esperado, Damian possuía um ponto de vista diferente do de Tren. Foi neste ponto que o soldado mais novo se levantou do banco e foi para o tapete de treino praticar. Aquela conversa já lhe estava dar dor de cabeça.
Tren: "Estou a ver o teu ponto de vista."
Damian começou a apanhar ar. Foi um discurso longo. Mais longo do que estava à espera, mas tem a certeza de que disse tudo o que havia para dizer.
Tren: "A tua filosofia é mesmo oposta à minha. Talvez isso seja inevitável. Eu sou um comandante que já passou por coisas terríveis e tu um escritor de jornal. Não é nenhuma anomalia isto acontecer."
Damian: "Nisso tem razão."
Tren: "Continuou a acreditar que quando alguém morre, está morto. Por isso é que me vês a sorrir após uma tragédia. Eu sei que as pessoas morreram, não vão voltar. Já me aconteceu receber a notícia de mortes de meus conhecidos e de ficar a chorar vezes e vezes sem conta. Assim fiquei até que me apercebi que, se assim continuar, ficaria a chorar para sempre. Então, decidi-me. Superei a morte, o meu passado. Mais vale a pena sorrir e superar o acontecimento do que ficar a chorar para sempre. No entanto, tu és diferente. Quem quer que seja que morreu na tua vida, ainda não superaste a sua morte. Mesmo assim, não te vejo a chorar por aí."
Damian: "Isso é porque nenhuma pessoa que acredita nestes meus ideais chora a vida inteira."
Tren: "Como é que fazem então?"
Damian: "Transportamos sempre a dor nos nossos corações, mas também mantemos sempre em mente de que o presente é tão importante quanto o passado. É assim que pessoas como eu vivem."
Foi muita coisa numa só frase. Tren tem que ponderar no que acabou de ouvir.
Ele leva a mão ao queixo, pondo-se a forçar o seu cérebro ao máximo.
O capitão pensa um pouco. Ele pensa e analisa este modo de vida. É válido e contradiz o seu. Significará então que este modo de viver é errado? Após algum tempo ele chega a uma conclusão. Ele tira a mão do queixo e diz:
Tren: "Bastante interessante esta conversa. A pausa acabou. Tenho de ir acabar a lição com o recruta ali. Mas devo dizer, foi uma conversa bastante interessante."
Damian sorri. Veio para recolher informação e acabou por ter um debate filosófico sobre o passado e a morte. A vida, às vezes, pode ser mesmo surpreendente.
Tren: "Desculpe só não ter lhe dado muita informação. De resto, foi um prazer conhecê-lo."
Damian: "Igualmente e não faz mal. Tem ao menos um nome que me possa indicar."
Tren: "Um nome dizes tu..."
O homem põe-se a pensar e tenta lembrar-se de algo que possa vir a ser útil. Tem a certeza que há algo que pode ser útil para aquele simpático entrevistador. Pensa, pensa e pensa e pensa mais um pouco até que um nome lhe vem à cabeça:
Tren: "Danic. Danic Verty. Ele era o piloto do helicóptero que levou o Billy e os outros até ao deserto. Pelo que entendi, ele aterrou o helicóptero e esteve à espera que eles voltassem. Não sei muitos detalhes, mas ele com certeza deve ter algo. Se bem que ele abandonou o exército depois do incidente. Ele...pareceu-me ter passado por demasiado. Estava bastante perturbado. Não sei muitos mais detalhes, mas certamente ele deve poder ajudá-lo."
Damian: "Entendido. Bem, obrigado pela sua ajuda."
Tren: "Sim, agradeço a visita."
O capitão estende a mão, preparando-se para uma despedida.
Damian não gasta mais um segundo e dá a mão.
Os dois dão um aperto de mão que consolidou a sua relação. Uma relação que acabou de começar. Uma relação que foi, acima de tudo, improvável.
Em pouco tempo, as usas mão separam-se e ambos têm que seguir caminho.
Tren: "Resto de bom trabalho e boa sorte com esse artigo."
Damian: "Sim, boa sorte com as sessões de treino."
Tren: "Espero que nos voltemos a encontrar num dia destes."
Damian: "Digo o mesmo."
O escritor do "The Right" verifica que tem tudo e vai até à entrada do local. Ele vê que vai chover. É melhor apressar-se. Damian acena para Tren e vai embora.
Já o capitão observa o escritor a ir embora. Não esperava um encontro do género. Foi uma surpresa agradável em todos os sentidos.
Tren: "Damian Mindler."
Murmurou para si mesmo.
Soldado mais novo: "Senhor, estou pronto!"
Informa o recruta, gritando.
Cada um tem o que fazer. É hora de voltar ao trabalho.
Tren: "Estou a ir!"
Diz, enquanto se dirige para o tapete azul.
Sarah ficou a ouvir rádio no carro. Está entediada. Apetece-lhe mesmo dormir. É capaz de ser isso o que fará em alguns segundos.
Os seus olhos estão gradualmente a fecharem-se. Está a olhar para aquele portão de metal há mais de 20 minutos.
Sarah: "Buahahahaaha!"
Boceja.
A espera parece interminável. A rádio também não ajuda nada.
Rádio de anúncios: "Nesta sexta, no canal CineMol, passa um filme como nenhum outro. Baseado no livro 'Contos de Um Reino Passado', chega-te com tudo-"
Também já não tolera a rádio, desligando-a.
Sarah aproxima o rosto do volante. Estava mesmo confortável. Ia adormecer quando o portão começa a abrir-se.
A secretária imediatamente recompõem-se como se tivesse tocado um alarme que a tirou do sono.
De dentro da base militar, sai Damian.
Ele agradece aos soldados da entrada e dirige-se até ao carro.
Sarah: "Como é que foi?"
Pergunta ela quando Damian abre a porta.
O escritor entra no carro, põe o cinto e vira a cabeça para Sarah, encarando-a com um olhar sério e sisudo de alguém que ainda não tem resposta formulada.
Sarah: "Que suspense! Diz lá o que se passou?"
Damian: "Não consegui nada. O capitão Tren tinha tão pouca informação quanto eu. Indicou-me outra pessoa que aparentemente não trabalha no exército e cujo nome já conhecia. O problema vai ser encontrar a sua morada. Posso dizer com segurança que é um caso perdido."
Sarah fica em choque. Só podia estar a gozar.
Sarah: "Repete lá o que acabaste de dizer."
Pede com um tom de voz malvado. Ainda assim, Damian não percebe como ela se sente e cumpre o pedido.
Damian: "Saí dali da mesma forma como entrei: de mãos vazias. Ao menos, conheci o capitão Tren que é um gajo mesmo porreiro."
Sarah: "Com que então não conseguiste nada..."
A secretária pausa. A raiva começa a subir lá dentro, como se fosse um vulcão a entrar em erupção.
Damian consegue sentir a pressão do ambiente a ficar mais dura. Está de cortar à faca. Caramba, passou o dia inteiro a ser intimidado, mas nunca se sentiu com tanto medo.
Sarah: "Estás a dizer-me que fiquei 30 minutos à tua espera para nada?"
Damian engole em seco. Prefere não responder. Sabe que, se o fizer, a situação ficará pior.
Sarah: "Ok, ok. Estou a ver."
Ela liga a ignição e põe a marcha atrás.
Sarah: "Nós vamos ter uma conversinha no caminho para o escritório."
Informa, sorrindo maleficamente.
Damian está a suar. A viagem vai ser mesmo dolorosa.
Pelo menos, aprendeu uma coisa: nunca deixar Sarah à espera.
Num apartamento, um homem prepara-se para sair. Está pronto para dar uma corridinha. Vestido apropriadamente para a situação e mentalizado de que iria voltar tarde a casa, provavelmente até depois das horas do jantar.
Homem a debater na televisão: "...e digo isto num tom sério, confiem em mim, este incidente só não foi uma tragédia por sorte."
Fala o homem na televisão do apartamento a debater com garra.
Mulher pivô: "Os nossos espectadores estão curiosos para saber a sua opinião sobre a possível relação deste incidente com outras tragédias. Querendo ou não, embora saibamos que eles são uma minoria da população, existem pessoas que acreditam que, talvez, o facto de ter sido detectada radiação nociva aos humanos esteja relacionado com, por exemplo, o incidente no Florida International College. Qual a sua opinião?"
Homem a debater na televisão: "Opinião? Isso nem se pergunta. É claro que é tudo mentira. Isto não passa de um incidente isolado. Eu sei que alguns maluquinhos por aí acreditam que este e o incidente na Florida International College têm raízes no sobrenatural e para eles eu digo o seguinte: DEIXEM-SE DE MENTIRAS E ACORDEM PARA A REALIDADE!"
Responde, num tom altíssimo e mais indignado do que nunca.
Neste momento, o homem ignorava isso tudo. Verificava se está pronto. Até se agachou para ajeitar os sapatos, sabendo o que lá guardava para usar sempre em situações de emergência.
Ao averiguar se tudo tinha pronto para sair, o nosso protagonista, Ron, acaba por passar pela sala de estar do seu apartamento. Lá, pegou na chave que se encontrava em cima de uma mesa entre o sofá e o pequeno armário com a televisão.
Ron: "AMOR, VOU SAIR!!"
Grita, avisando a sua namorada que se encontra no quarto.
Namorada de Ron: "ASSEGURA-TE QUE VOLTAS A HORAS DO JANTAR."
Ron: "OK."
Chaves. Flip phone no bolso. Ténis com os atacadores bem atados. Parece tudo bem.
Antes de ir até à porta, contudo, Ron passa os olhos pela televisão, só por curiosidade. O comentador parece estar tão desnorteado como imaginava. Ainda assim, detesta admitir, mas aquele homem zangado tem razão.
Nada neste mundo se deve a fantasmas ou superpoderes. Para Ron e quase todo o resto do mundo, tudo pode ser explicado pela ciência. Quem recorre a métodos menos naturais para explicar, não passa de um maluco e nada mais.
Ron: "Ao menos a maioria ainda tem cabeça para pensar e dizer a verdade."
Comenta, olhando para a tela da televisão.
Então, já um pouco farto de ouvir o homem indignado e vendo que tem de ir rápido, Ron vai até à porta e abre-a.
Decidido, ele vai descendo as escadas. Passa por degrau atrás de degrau atrás de degrau a uma velocidade constante. Aquela escadaria parecia infinita. Contudo sempre conseguiu chegar ao rés-chão. Foi só abrir a porta do apartamento e já chegou ao exterior. Sentiu o ar e a brisa a tocarem-lhe levemente na bochecha. O céu andava meio nublado. O sol põe-se e a lua, ainda pouco brilhante, pode ser vista no céu.
A lua. Esta sim cativa-o, por muito estranho que possa parecer. Nem o próprio sabe porque é que a lua lhe chama tanto a atenção ou porque é que não consegue tirar os olhos dela.
Ron: "..."
Isso sim é um dos mistérios que ninguém quer responder. Mesmo assim, é um dos mistérios que mais precisa de resposta. Ok, mas acho que já chega de contemplar a lua.
A rua até está vazia. Todos devem estar em casa a comer um jantar quente, acolhedor e caseiro. Só depois desta corrida é que terá o seu.
Então, tirando os olhos do céu, volta a atenção para a frente e começa a caminhar. Ron ia andando no passeio do lado esquerdo da rua de alcatrão vazia. Estava nada mais nada menos do que a sair do seu bairro para ir até à rotunda onde estão as grandes lojas e a grande parte das pessoas. E pôde-se ver a grande freguesia do local, mal deu os seguintes passos.
Até porque, nos segundos seguintes, ele saiu do seu bairro e chegou...à rotunda. E bastou ficar lá um segundo para o clima mudar drasticamente, tornando-se rapidamente barulhento.
À sua frente, está uma rotunda. Vários automóveis passam por ela e vão ou para a esquerda ou para a direita, indo por passagens que se encontram entre edifícios e lojas. Além da rotunda repleta de lojas, apenas estão algumas residências.
Mantendo o seu ritmo de corrida, ele para ao pé da passagem da direita. Quando um condutor decide parar o seu carro, Ron agradece com um gesto e segue a correr. Assim ele chega oficialmente em zona da rotunda, onde o som da meia dúzia de carros que por lá passam se mistura com os sons indistinguíveis da multidão. Ron entra logo a correr.
Lá foi ele. Passando pelas lojas e pelas pessoas com sacos de compras. De vez em quando, olhava para as montras das lojas que lhe apanhavam o olhar. Tal como olhou para a montra de uma loja de roupas que viu para ali.
Ron, já ofegante, passou por lojas de roupa, lojas de brinquedos artesanais, lojas de bebidas alcoólicas, etc. Passou os olhos pelas montras de todas. Inclusive uma loja de eletrodomésticos. Esta loja que tinha na montra, em exposição, televisões ligadas nas notícias a dar as mesmas barbaridades sobrenaturais que estava a ver antes de sair.
Já até tinha chegado à estrada de onde vêm os carros. Olhou para os dois lados, esperou que alguém o deixasse passar e lá foi adiante para o outro lado. Ainda tinha pessoas a andar de um lado para o outro a fazerem compras e a entrarem nas lojas. Não havia nada que o diferenciasse do outro lado.
Correu, correu e correu mais um pouco.
Ia tudo a correr bem. Estava apenas a fazer o de sempre, com suor a escorer-lhe pela testa e pescoço abaixo, quando ouviu algo:
Homem de cartaz: "Ouçam bem, eles existem!"
Foi apanhado de surpresa. Não foi suficiente para parar a sua corrida. Ainda assim, foi o suficiente para virar o seu rosto molhado de súor para o que se passava.
Era, nada mais nada menos, do que um homem, de barba longa e roupas rasgadas. As suas mãos seguravam uma placa de cartão onde se podia ler: "Os monstros estão a vir".
Homem de cartaz: "Peço-vos que entendam, população frágil. Estes incidentes não são coincidência. Eles são mais do que incidentes, são o presságio para algo maior. Nada do que aconteceu seria possível sem essa explicação! Senão, expliquem-me como é que pôde acontecer o incidente na Florida International College? Como é que explicam que apenas um miúdo tenha morrido num suposto acidente terrorista? E o incidente em África? Como é que explicam que um vírus tenha aparecido e desparecido em menos de um mês? Vamos, expliquem. EXPLIQUEM-ME?"
Acho que conseguem perceber que ele não parece estar bem mentalmente. Não defende ideais lá muito convincentes. Isso é o que Ron e o resto da multidão acha. Afinal, nenhum deles parece parar para o ouvir. Tanto que eles simplesmente passam por entre o velho, tentando fazer o máximo de distância possível.
Está claro o que acham dele: um maluco. Uma minoria que acredita naquelas parvoíces de "monstros" e do "sobrenatural". São apenas parvoíces em que malucos como ele acreditam.
Por enquanto, este tipo de pessoas não as irrita ao ponto de lhes mandar calar ou dizer certas coisas.
Homem de cartaz: "Ignorem-me! Ignorem-me e continuem a ignorar-me. No fim, veremos quem é o verdadeiro maluco. ESTÃO A OUVIR, CIDADÃOS DE LOS ANGELES E DE TODA A CALIFÓRNIA? VOCÊS VERÃO!"
Já nem diz coisa com coisa. Se Ron não estivesse tão atrasado para o jantar, já teria chamado a polícia. A sorte daquele velho é essa. Ainda bem que se afasta dele, neste momento. Agora Ron está a passar ao pé da passagem da esquerda. Fez como nas outras vezes e foi para o outro lado.
De resto, não aconteceu muita coisa. Passou o tempo a correr. Ele correu e correu, agora com suor em todas as partes do seu corpo. Rapidamente, Ron, percorreu esse trilho e deu por si a voltar a entrar na zona do seu bairro. Caramba, foi mesmo cansativo, mas finalmente chegou. A suar e bastante ofegante, mas chegou.
Entrou numa zona mais calma. Uma zona a que está mais acostumado. Não faz mal abrandar um pouco. Afinal, mesmo que vá a andar, chegará em poucos minutos a casa. É uma completa golfada de ar fresco. Não só no sentido de ser diferente, como no facto de o permitir respirar e apanhar um pouco mais de ar do que conseguia em esforço físico.
Ron: "Finalmente..."
Nem conseguiu impedir-se de exclamar o quão mais tranquilo se sente. Estava mesmo a precisar de abrandar um pouco. Agora, estava calmamente a passar no seu bairro, junto a um beco, e tudo corria bem, sem nada a interromper o seu bem-estar de qualquer for-
*Sisch*
Voz masculina: "Não te mexas."
Sente algo frio no seu pescoço. Não é de um humano, é uma lâmina. E a voz, essa sim é humana. Parece vir do beco à sua esquerda.
O que aconteceu é que desse beco à sua esquerda emergiu um homem que lhe aproximou a sua faca do pescoço. Mas, porquê? O que é que Ron lhe fez de mal, se é que ele fez algo de mal? As perguntas não param de surgir, contudo a maior preocupação é sair dali vivo. Se bem que essa parece uma tarefa impossível, especialmente tendo em conta que se encontra a tremer da cabeça aos pés. Está tão nervoso que paralisou.
Voz masculina: "Vejo que estás nervoso. Façamos o seguinte, se seguirmos as minhas ordens, isto acabará rápido, ok?"
Diz a pessoa com a faca notando que as pernas e mãos da vítima estão a tremer. Ainda assim, Ron não responde. Ele não consegue fazer nada. O seu stresse e medo controlam-no. Mas o homem com a faca ainda não ouviu uma resposta do refém.
Homem com a faca: "Estás a ouvir-me? Então? Tudo bem por aí? Homem!"
Ele tenta, mas continua sem resposta. Acho que as palavras não funcionam. Logo, terá de optar por alguma ajuda externa.
Homem com a faca: "Caramba. Jamis, vê se ele está bem."
Jamis: "O que é que eu disse sobre dizermos os nomes uns dos outros?"
Responde uma voz vinda do beco.
Homem com a faca: "Sim, desculpa. Agora fazes-me o favor de ir tratar disso?"
Jamis: "Apenas estou a avisar-te. Os nossos nomes entregam quem somos. Podem trazer-nos grandes problemas, particularmente quando a vítima sabe quem somos."
Homem com a faca: "Tch. Até parece que ele se vai lembrar disto. Olha para ele, está tão cagado de medo que nem se consegue mexer. Já para não falar que, com os tempos em que vivemos, é capaz de os humanos serem a nossa menor preocupação."
Ele claramente fala dos monstros. Jamis ainda decidiu seguir as ordens do colega. Saiu da escuridão indo ter com Ron na luz. No entanto, no pequeno caminho que fez respondeu-lhe.
Jamis: "Como queiras, mas não sabia que eras desses."
Responde, num tom um tanto quanto decepcionado. Esse tipo de pessoas que creem no sobrenatural têm mesmo má reputação. Acusar alguém disso é quase tão mau quanto uma sentença de morte. O homem com a faca sabe disso e não deixa esta passar.
Homem com a faca: "Não é isso o que eu queria passar. Acho essas histórias uma bela mentira, como qualquer um. Queria era deixar claro como este tipo é uma das menores preocupações que temos."
Jamis: "Lá nisso tens razão. Mas assegura-te que na próxima usas uma pistola. Eu sei que te inspiras no chefe, todavia, confia quando te digo que isto teria acabado mais rapidamente com uma arma de fogo. A sério, a experiência fala por si e o nosso chefe não é um bom exemplo."
Neste ponto, o homem com a faca já nem lhe puxa conversa. Deste modo o homem de descendência mexicana é iluminado pela luz. Vai até às costas de Ron sem o deixar ver o seu rosto.
Jamis: "Ok, vou deixar-te isto claro, homem."
Ron: "..."
Jamis: "Caso não tenhas entendido, isto é um assalto. Acredita quando digo que queremos despachar isto tanto quanto tu. Querendo ou não, estarmos aqui expostos já é um risco. Por isso, pedimos que cooperes conosco. Facilitará a nossa vida e a tua igualmente."
Ron: "..."
O homem estava a começar a ficar com o braço a doer de tanto ele estar estendido com a mão a segurar a faca. Jamis daqui a pouco estava a perder a paciência. Está a demorar muito tempo e, se alguém os vir, isso pode conduzir a problemas no futuro.
Jamis: "Tu não estás a ouvir, pois não?"
Ron: "..."
Ron com as pernas a tremer nem esperava o que aí vinha. Jamis olhou para o seu companheiro e num tom completamente sério, pede-lhe:
Jamis: "Podes pregar-lhe um susto."
Homem com a faca: "Susto? Porquê? Temo-lo à nossa mercê?"
Jamis: "Dá asas à tua criatividade. Tem é que ser algo que o acorde para a realidade. Tem que ser como um balde de água fresca na cara dele."
Homem com faca: "Sim, mas porquê?"
Jamis: "Ele pode ter informação importante. Pode dar-nos mais pistas sobre possíveis vítimas futuras. Já para não falar que não sabemos se ele esconde alguma coisa em lugares pouco habituais. Não é como se nós, bandidos de rua recém recrutados, soubéssemos revistar alguém. Se fôssemos mais experientes, a conversa seria diferente. Claramente essa não é o caso em que nos encontramos. Penso ter sido claro, desta vez, deu para entenderes?"
Responde-lhe agressivamente. O seu companheiro até teve que baixar o peito e diminuir o seu orgulho.
Homem com a faca: "Acho que compreendi."
Diz, sem conseguir esconder a sua incerteza quanto ao que fazer. Na verdade, ficou na mesma. Ora muito bem, o que é que fará acordar alguém para a realidade? Vendo bem o ambiente, percebe que não tem muito com que trabalhar. Só uma faca e o resto do seu corpo. Dá para fazer algo, não sabe se será eficiente. Pois é, agora que o seu cérebro funciona, algo lhe vem à mente.
Jamis: "Tens algo em mente?"
Homem com a faca: "Espero que isto resulte."
Ele afasta a faca do pescoço de Ron e ergue-a no ar. Parecia que ele ia matá-lo mesmo ali. Tanta preparação para um golpe que durará segundos.
Tem que se deixar de mariquices e fazer logo o que deve. Basta segurar bem a faca, dar o golpe e em pouco tempo tudo voltará ao normal. É só isso eeeeeeeeee-
*Slash*
Mirando na bochecha de Ron ele baixou a faca. Executou-lhe um profundo corte. Ron sentiu a lâmina a rasgar a sua pele. Um corte tão profundo que quase lhe tocou no osso.
Ron: "Ah."
Deste modo, Ron acorda. Os seus olhos arregalaram-se ao sentir a lâmina. Foi ao sentir o sangue a sair do corte que o resto do seu corpo acordou.
Ron: "...eu..."
Jamis: "Bom sono esse que tiveste."
Ron ouve a voz de alguém e isso apenas o deixa mais confuso. São tantas surpresas a serem atiradas para cima dele que, daqui a pouco, irá desmaiar. É tanta coisa ao mesmo tempo que...
Jamis: "Comparsa, entendo que ainda deves estar a acordar. Pelo menos tens ar disso. Mas ao menos deixo-te já bem claro o que queremos: dinheiro. Consegues dizer-nos onde o guardas?"
Ron não responde. Começa a olhar em redor tentando perceber de onde vem a voz. Vê a rua vazia. À sua esquerda, o que parece ser um homem envolvido na escuridão do beco. Está tão escuro que nem dá para ver o seu rosto, Olha para trás e vê também um homem.
Jamis: "Sim, caso não tenhas entendido, sou eu com quem deves falar."
Confirma as suspeitas de Ron, que ainda se encontra com a sobrancelha contraída, olhos semiabertos e cara que grita confusão.
Ron: "T-T-Tu és?"
Diz, gaguejando e voltando a recuperar o controlo sobre o seu corpo pouco a pouco.
Jamis: "Não importa. Agora, eu fiz-te uma questão: onde tens o teu dinheiro?"
Ron: "D-Di-Din-Dinheiro...dinheiro..."
Homem com a faca: "Anda lá, homem. Não quero ter de esperar mais."
Diz, segurando com força na sua faca. A força com que a segura é tanta que é possível ver o seu braço a tremer, de tanta força a ser exercida. O movimento trémulo do seu braço até atrai a atenção de Ron. Vai guiando o seu olhar para o braço do homem e vai descendo e descendo e descendo, passando pelo braço. Do braço vai para a sua ponta, chegando à mão e na mão vê...
Ron: "Vocês querem..."
Jamis: "Dá-nos o dinheiro. É assim tão simples."
Não lhe deixam muita opção. Hoje não pode arriscar. Não só porque tem jantar, como tem muito a perder. Ron tem namorada e nem quer imaginar como é que ela viveria sem ele. Resistir não é opção. Afinal, é resistir e morrer ou desistir e viver. É impossível chegar a um meio-termo. Eles...ganharam.
Ron: "P-Peço desculpa. Vou já tratar disso."
Então, ele tira do bolso a sua carteira. Abre-a e tira um maço de notas. Custa muito ter que entregar todo este dinheiro que obteve com o seu trabalho árduo em casa. Ele é programador de jogos e passa quase todos os dias a trabalhar em casa num computador.
Mais do que dinheiro, tinha notado em mais algo. Volta a colocar a mão no bolso e tira...as chaves de casa. Sim, pode usá-las como arma. Se a espetar no olho de um deles, preferencialmente no da faca, terá tempo para escapar. Contudo...
Jamis: "Nem penses em usar isso como arma, seu sacana."
Diz, com raiva no coração, como se já estivesse farto de ver coisas do género a acontecer. Mas, de certa forma, esta maneira agressiva de falar mostrou-se efetiva. Intimidou Ron e fê-lo voltar a pôr as chaves no bolso. Ficou muito mais satisfeito ao ver aquilo, mas com raiva por ter sequer sido obrigado a avisar alguém tão insignificante como Ron de tal.
Jamis: "Muito bem. Tens mais em alguma outra parte da carteira ou, talvez, escondido em outra peça de roupa?"
Inquire-o, com curiosidade e julgando haver um pouco mais. Ron percebeu isso. Percebeu-o e isso deixou-o triste. Ron sabia que, infelizmente, aquele desgraçado tem razão.
Fecha a carteira e coloca-a no bolso. Mantendo um maço de notas na mão, com um pesar no coração, agacha-se. Ele coloca a mão no sapato e tira de entre as suas meias e o interior do ténis mais um maço.
Neste ponto, os assaltantes já estavam em êxtase e nem queria acreditar que lhes tinha calhado um jackpot. Em contraposição, Ron sentia ódio por si mesmo e tristeza por ter de ver o trabalho da sua vida a ser entregue a desconhecidos que nem lhe querem bem. A sua fraqueza é o que mais o irrita.
Já com sorrisos no rostos, os criminosos celebram o sucesso. Ron, por sua vez, aceita a sua derrota. Não pode fazer nada especialmente agora. É simplesmente tarde demais. Por isso é que não se vê com outra opção que não seja entregar o dinheiro e submeter-se a eles.
Vendo-se encurralado, Ron levanta-se. Estende a sua mão direita, trémula, para a frente, na direção de Jamis. Infelizmente, terá de entregar o dinheiro e, de bônus, ainda continua com medo dos assaltantes. Sente-se mesmo patético.
Jamis vê o dinheiro à sua frente. Sem um pingo de delicadeza, o criminoso tira o dinheiro à força das mãos do inútil Ron. Tem os olhos a brilhar. O criminoso nem cinta o dinheiro, dá uma breve vista de olhos e olha para o seu companheiro.
Jamis: "Acho que podemos ir em paz."
Diz, com um sorriso no rosto e erguendo o maço de notas no ar com orgulho.
Homem com a faca: "Boa! O chefe vai gostar."
Celebra, contendo uma risadinha de felicidade.
Jamis: "Pelo menos sempre acontece algo de bom com aquele pirralho no comando. Anda, podemos sair daqui."
E, sem mais nem menos, eles saem dali. Os dois infiltram-se na escuridão. Vão adentrando-se cada vez mais, tornando-se cada vez menos visíveis. Até que, eventualmente, eles desparecem, deixando o perdedor sozinho.
No fim, apenas sobrou Ron. Com um corte na bochecha e medo e tristeza no coração. Ficou a perder no meio disto tudo. Perdeu o seu dinheiro, felicidade e dignidade. Atingiu o seu ponto mais baixo.
Mas agora é tarde. O passado é passado. Não vale a pena ficar a chorra sobre o leite derramado. Se queria felicidade, tivesse agido no momento. Apenas se encontra nestas condições por sua culpa. Sim, esta é a realidade. Triste, mas é a realidade inalterável da situação.
Logo, ele olha para trás e para a frente. Naqueles segundos decide o que fará. Ligará à polícia? Ou chamará alguém? São todas opções válidas, mas, nesta situação, não vale a pena procurar justiça para se vingar daqueles dois. Eles que aproveitem o dinheiro enquanto podem. O que mais interessa para Ron é ele próprio e não o que aconteceu.
É verdade que terá de superar deste incidente. Sabe também que irá demorar bastante. Não será hoje, não será amanhã. Pode até mesmo esse dia nunca chegar. O que precisa é de dar o seu melhor e seguir em frente.
Pois, nestes dias, isso é o mais difícil de fazer. Então, chegando a esta conclusão, Ron vira-se para a frente com um olhar destemido e torna a caminhar. O tempo está a acabar e não pode chegar atrasado para o jantar. Isso sim é o que mais lhe importa: o presente.
No bairro da casa de Damian, ao pé de um caixote do lixo, está lá um homem. Alto e bem encorpado.
É precisamente o mesmo homem suspeito que Damian viu de manhã. Ele permanece no mesmo lugar desde a manhã, ao pé do maldito caixote do lixo verde vómito.
Porquê? O que quer ele? Quer ele mal ou bem para Damian?
Essas são perguntas às quais apenas este esquisito indivíduo e Damian sabem responder.
De qualquer forma, o homem não se mexeu ao longo do dia. Ficou exatamente no mesmo lugar, com a garrafa na mão a ver quem passava na rua.
Foi um dia bem secante. Ninguém passou por ali. Mas é que nem uma pessoa.
E o homem lá ficou, a beber a sua garrafa, agora vazia, e a ouvir os trovões. Para sua sorte não choveu. Mesmo assim, se isso acontecesse, ele provavelmente permaneceria no mesmo lugar. A isto é que chamamos dedicação.
Homem: "Que seca..."
Diz para si mesmo, como meio de desabafar o que sente lá dentro.
Voz misteriosa: "Estás mesmo dedicado a esta missão, Ner."
Intervém uma voz misteriosa pertencente a alguém que se encontra ao seu lado. É alguém que parece já o conhecer bem, tanto que o trata pelo seu real nome.
Ner: "Foste tu que me deste a missão, por isso, sim, é claro que vou dar o meu melhor. Ainda por cima porque esta nem é das piores tarefas que um subordinado teu pode ter. Ir fazer negócios com o Reyner é pior. Oh, isso sim é terrível. E olha que já estive nesse lugar e falei com o pessoal que foi falar com ele ontem."
Voz misteriosa: "E que tal?"
Ner: "O mesmo de sempre. O tipo está mais para um inimigo do que para propriamente parceiro de negócios. Só falta ele mesmo declarar as suas intenções mais cedo ou mais tarde. E pela forma como o mundo tem andado, não deve demorar muito...pois até ele pediu pessoalmente ao nosso homem que lá foi hoje que quer conversar conosco. Assim sempre ficamos com algo para fazer, por muito que o que ele nos vá contar seja muito provavelmente algo mau. Pena. O produto dele até que é popular com os vendedores que temos lá em Nova Iorque. Ou...bem...afinal é só uma pessoa que temos lá a vender. Mas tu entendes."
Voz misteriosa: "Está certo. Vai ser uma maçada, porém lá trataremos disso amanhã. Por agora encontro-me mais intrigado na tua postura. Conhcendo-te bem apercebo-me que dizes muita idiotice agora, mesmo sendo palavras vindas da tua boca. Pareces ter andado a beber, surpreendentemente. Não sabia que gostavas de bebidas alcóolicas."
Ner: "E continuo sem gostar. Pensei que era um refrigerante e, por isso, fui beber, mas parece não ter sido o caso."
Se não conhecesse bem Ner, o homem misterioso já estaria a dar uma gargalhada. Aquele gajo consegue ser mesmo burro às vezes. No entanto, não é isso que veio aqui saber. Tem alho que lhe quer perguntar.
Voz misteriosa: "Ok. E até quando pensas aqui ficar? É que, daqui a pouco vai chover e não quero molhar as minhas vestes."
Ner: "Olha, ficarei aqui o tempo que for necessário. Da próxima vez que ele por aqui passar eu aviso, por isso, podes ir abrigar-te à vontade."
A pessoa do lado parece agradada.
Voz misteriosa: "Entendido, deixo tudo contigo. Os negócios de venda de droga continuam a correr e os assaltos também, embora as vítimas pareçam mostrar mais resistência. Bem tudo vai continuar em andamento. Quando ele passar por aqui, avisa. Eu e o resto do grupo teremos o gosto de lhe pregar uma visita."
Ner: "Não há crise, eu aviso. Só gostava de saber se vais fazer-lhe uma advertência como de costume."
Iza: "Por acaso sim, porquê?"
Ner: "Nada em particular."
Iza: "Ok, vemo-nos em momentos, espero eu."
E assim, o indivíduo afasta-se de Ner e daquele malcheiroso caixote do lixo e vai para longe.
Já Ner, coloca-se de cócoras e olha atentamente para o outro lado da rua.
Ner: "Vem até nós, Damian. Estamos à tua espera."
Tem de se despachar. Não pode deixar Sarah à espera novamente. Não quer levar outro raspanete.
Relembra-se a si próprio do que veio fazer ao escritório do "The Right".
Veio buscar a papelada, de modo a adiantar trabalho em casa, uma vez que a visita ao capitão Tren gastou-lhe muito tempo. Pode não parecer, especialmente agora com o céu nublado, mas o dia está a terminar. É hora de voltar para casa.
O escritor do "The Right" passa pelo escritório com poucas luzes ligadas. O jornal vai fechar em breve.
Muitos poucos cubículos têm a luz acesa. Devem ser pessoas que estão nos seus últimos minutos de "trabalho" do dia. Sim, "trabalho". Não vale a pena esconder. Damian passou por eles e garante que só lá estão porque a música ainda não acabou ou porque estão demasiados absorvidos no jogo. Ele passa por muitos cubículos, a maior parte dos quais estão de luz apagada e inocupados. Até que, enfim, ele chega.
Damian: "É aqui."
Damian entra no cubículo de luz apagada. O homem pega em todos aqueles papéis soltos na secretária, une-os e coloca-os debaixo do ombro.
Por hoje está tudo.
E sai do cubículo.
Preparava-se para dirigir-se ao carro, pois Sarah estava lá à sua espera e é melhor não deixá-la a esperar, como aprendeu da pior forma. Ia fazer precisamente isso quando...
Voz misteriosa: "Raios!"
Um grito. Um grito de alguém com raiva e que se está a passar. Seja qual for a razão, esta pessoa está muito provavelmente a exagerar.
Olhando em redor, ele nota que mais ninguém se encontra por perto. Apenas na entrada do escritório. Em outras palavras, só Damian é que deve ter ouvido o grito.
Damian sabe o que tem de fazer. Ainda assim, aquele grito é novidade. Costuma ficar até tarde no jornal, mas esta é a primeira vez que ouve algo do género. Simplesmente está curioso.
Curioso, no entanto, não quer deixar Sarah à espera. A gritaria que levou no carro já foi suficiente. Prefere não levar com outra pelo bem dos seus ouvidos. Ainda assim...
Damian: "Eu preciso de voltar, mas...este grito é intrigante. O que faço?"
Já está a pensar em voz alta. Isto é prova definitiva da sua indecisão. Não sabe mesmo o que fazer. É simples: ou vai embora ou vai resolver o mistério. O que fará?
Damian: "Ah, que se lixe."
Precisou de se decidir rapidamente. No fim, a curiosidade venceu. Isso não significa que foi a melhor escolha.
Damian, em passos suaves de lã aproxima-se, lentamente do local de origem do som. São passos semelhantes aos de um espião de um filme que se está a esgueirar na base inimiga. A sua reputação acabará caso alguém o apanhe a fazer algo tão embaraçoso.
Ele aproxima-se cada vez mais. A cada passo leve e imperceptível que dá naquele cenário escuro que se está a tornar cada vez mais difícil de ver.
Damian anda e anda e anda cuidadosamente até que chega a uma esquina.
Isto vai dar o escritório do Daniel, pensa ele.
Nem sabe o que se está a passar. Terá sido Daniel quem deu o grito?
Olhando bem, as luzes do escritório do Diretor ainda estão acesas. Por isso, é uma possibilidade.
De qualquer forma, se quer descobrir o que se passa, só necessita de se aproximar mais da porta. Só precisa de fazer isso e ent-
Damian: "Nem pensar."
O escritor do "The Right" dá meia volta e começa a andar para trás.
Damian: "Não posso deixá-la à espera. Seria parvoíce cometer o mesmo erro duas vezes."
Relembra-se a si mesmo em voz baixa, com genuíno medo.
Realmente, as lições que aprendemos definem o nosso comportamento futuro.
Neste caso, o medo de levar com mais berros de Sarah no carro foi o suficiente para o impedir de descobrir um dos maiores mistérios desta história.
Jeff não comeu muito durante o dia todo. Para ser sincero, Damian também não. Tal pai, tal filho.
O rapaz vai até ao frigorífico. Não há nada para comer. Também não é como se estivesse com fome. O susto foi tamanho que lhe tirou o apetite.
Por isso, ele vai para o sofá e senta-se. Não tem muita escolha. É este o regime de férias. Um pouco secante.
Não existe muita coisa para fazer além de ver televisão e dormir. E Jeff claramente não quer ver televisão. Esperou tanto tempo para umas férias, mas, quando elas chegam, quer logo voltar para a escola. Acontece que essa nem é a pior parte desta situação toda. Não, aquela criatura é que é o grande problema que o tem atormentado e parece assim continuar.
Já não bastava ter estado a morrer de medo sempre que vai dormir, ainda teve este acontecimente. Parece que tudo, precisamente tudo lhe remete para quele dia e aquele acontecimento, incluindo o monstro que tem estado a atormentá-lo há um ano. E foi há um ano que aquilo aconteceu. Foi há um ano atrás que a sua mãe morreu.
Lágrimas continuam a cair do seu rosto. Vêm incessantemente sem indicação que irão parar. Elas estão vinculadas a ele. A sua identidade é definida pelo seu sofrimento a este ponto de tanto que se acostumou a este sofrimento. Que porcaria. Que triste...que triste é esta realidade e mundo. De súbito, o clima interior de Jeff muda e vários sentimentos negativos invadem a sua mente. Sentindo isso, Jeff, com medo das recordações e do passado, agarra-se à manta azul que se encontra na borda do sofá e envolve-se nela.
Jeff: "Porra."
Ele limpa e limpa, mas elas não param de vir. Elas não pararão enquanto ele se continuar a lembrar do passado. E tudo, tudo mesmo lhe lembra daquele incidente. O urso na televisão que lhe remete para o peluche que largou na poça de sangue. A criatura que apareceu na primeira noite após a morte de sua mãe. Não importa as diversas vertentes e assuntos que traga ou adote, todos os caminhos levam ao trauma daquela noite.
Mas nessas depressivas divagações, ele lembra-se que sempre tem algo a fazer. Ainda não fez a sua anotação diária no caderno. Sim, é um costume dele que tem vindo a adotar nos últimos meses. É uma forma que arranjou para registar e estudar os comportamentos daquele monstro noturno.
Com essa ideia, esquece-se um pouco da tristeza, embora esta permaneça sempre no fundo da sua cabeça. As lágrimas abrandam e Jeff aproveita para as limpar de vez com a manga do seu pijama, já bastante molhada. Ele levanta-se, com o mesmo rosto triste e agarrando a manta que senecontra nas suas costas, ainda um tanto quanto molhado, e dirige-se ao seu quarto. Vai até às escadas e, degrau a degrau, vai subindo, com cada degrau fazendo um som de ranger de tão velha que era a madeira da escadaria.
Eventualmente, ele chega ao cima das escadas. Torna para a sua direita e vê a porta entreaberta do seu quarto. Sem hesitar, Jeff segue e dá um leve puxão na porta para depois entrar. Dá alguns passos e finalmente entra no seu quarto.
A janela está fechada e, a partir dela, dá para ver as nuvens negras a servirem de prenúncio para a tempestade por vir. Mas esta janela encontra-se apenas na parede direita e nem é lá muito ampla, tendo por volta de 1 metro de comprimento e largura. A cama mantém-se desarrumada de quando levantou. Tanto tempo livre e nenhum para as suas obrigações.
Ok, mas chega desses pensamentos dispersos. Vamos diretos ao que veio fazer. Jeff segue com a manta nas costas e vai até à sua mesa de cabeceira do lado da cama. Aproxima-se da mesa de cabeceira e abre a primeira gaveta, a gaveta mais de cima. Dentro da gaveta não está nada de importante. Só pó e mais algumas porcarias cuja origem é desconhecida. Na verdade, até está lá algo de relevante. Uma coisa de relevante. Trata-se de um pequeno caderno de bolso com uma caneta a marcar uma certa página aparentemente situada no meio do caderno. É por isto que procura.
Jeff pega no caderno e tira-o de dentro da gaveta. Ele pousa-o em cima da mesa de cabeceira e abre-o.
*Vorou*
Primeiro, abre na primeira página, que deixou em branco de propósito. Folheia para a página seguinte e vê as primeiras escrituras. São apontamentos que tem feito neste último ano sobre as aparições da criatura.
Neste caso, parou na primeira página de anotações, no primeiro dia que teve problemas com a criatura. Só por curiosidade, decidiu ler para ver como se sentia e se a forma como reagiu ainda se compara à forma como reage atualmente. Ele coloca a mão na página e começa a ler a página da direita, a página com os registos do primeiro dia: "Escrevo neste caderno com o intuíto de descrever o que vi. Certamente não foi algo normal. Quer dizer, hoje, o dia foi tudo menos normal. Não bastou ver a minha mãe morreu ainda vi a criatura. Era muito escuro e não entendi muito bem o que ele queria. Apenas parecia estar no fundo do meu quarto, parado, a observar-me. Ficou a fazer isso durante uns bons minutos e depois desapareceu quando liguei a luz com medo. A luz, por alguma razão até se mostriu eficiente, por alguma razão. Não sei mais o que dizer. Não sei mais o que esperar após o que este dia me trouxe. Não consigo tirar as imagens da mãe da minha cabeça. Não consigo parar de vê-la deitada no chão com san-"
*Vorou*
Jeff decidiu que tinha lida o suficiente. Quando começou a ler a parte em que fala com mais detalhes sobre a morte da mãe, memórias vieram-lhe à cabeça e levaram-no a mudar de página. Aquelas memórias...esqueçam, só precisam de saber que são pesadas e devem ser esquecidas a todo o custo. Contudo, são memórias que Jeff não consegue esquecer e que carrega sempre consigo, pois, mesmo quando não está a ser relembrado delas ou a pensar nelas, estas permanecem a ser reproduzidas no fundo da sua mente.
E já chega desta coisa toda. Se a sua memória não lhe falha, as próximas anotações dos próximos dias não devem ter nada sobre a sua mãe. Por isso, foca-se e tenta fazer estas memórias voltar ao espaço mais fundo da sua mente. Quando se sente confiante o suficiente, torna a ler.
Passa os olhos pelo registo do segundo dia. Segundo o que lê, não aconteceu nada de mais. Estava ainda confuso, mas a criatura não fez nada de novo e Jeff viu-se obrigado, na mesma a ligar a luz e a passar o resto da noite de luz acesa, como tinha feito no dia anterior. Diz que a criatura pode, no entanto, ter passado alguns segundos a menos a observá-lo.
*Vorou*
Terceiro dia e Jeff começou a acostumar-se um pouco mais com a presença do monstro. Houveram, no entanto, algumas diferenças. E quando digo diferenças digo que a criatura ficou menos tempo a observá-lo. Isso significa que, a fim de um certo intervalo de tempo, ele desaparecei. A luz ainda foi acesa, mas foi mais um ato de precaução. Fixem isto, pois esse aspeto será importante.
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Passando um pouco à frente. Décimo dia e a criatura passou ainda menos tempo e foi a primeira vez em que não viu necessidade em acender a luz, escolha que perdurou para os restantes dias.
*Vorou*
Vai passando os olhos e vendo que o tempo só diminui com o passar do tempo. Isso bate certo no décimo primeiro dia. Olha para a outra página e conclui que também bate certo no décimo segundo dia.
*Vorou*
Bate certo com o padrão. O tempo em que a criatura aparece continua a diminuir de um dia para o outro dia.
*Vorou*
*Vorou*
Bate certo. Ainda a diminuir.
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Continua a bater certo. Diminui.
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Sem problemas por aqui.
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Ainda sem problemas.
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Espera, isto pode ser mesmo verdade.
*Vorou*
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Não, é isto mesmo, só mais um pouco...
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Quase lá.
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Só mais umas páginas e-
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
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*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
*Vorou*
Está confirmado.
Jeff chega à pagina marcada com uma caneta preta retrátil. Está branca dos dois lados para poder escrever o registo do dia de hoje no lado esquerdo. E ainda bem que tem esta página toda disponível, pois hoje julga ter feito uma grande descoberta. Já tinha algumas suspeitas, mas agora elas foram confirmadas.
Chegou a uma conclusão que julga explicar o que tinha acontecido à noite. Por isso, ele pega na caneta e carrega no botão que deixa sair a ponta de tinta preta. Tudo para, com algo em mente, escrever o registo de hoje:
"Esta noite, fui dormir outra vez, só que com ansiedade a mais, por saber que o aniversário da morte da minha mãe estava próximo. De qualquer forma, deitei-me e esperei que o meu pai chegasse para me dar o seu beijo de boa noite, mas, como ele estava a demorar, desisti e decidi ir dormir. Por isso, apaguei a luz e decidi ir dormir de uma vez e foi quando, como já esperava, ele apreceu. A criatura mostrou-se e estava a observar-me, com uma simples diferença: ela não desapareceu logo. Ficou muito mais tempo do que o normal. Minutos passaram-se e ele não desaparecia. Teve que vir o meu pai atrasado para ligar a luz e deixar-me a salvo. Quanto ao resto da noite, vi-me obrigado a dormir com a luz ligada, como fiz nos primeiros dias. É aí onde quero chegar. Não tenho a certeza e isto no fundo é só uma teoria, mas acho que a criatura tem alguma relação com os meus sentimentos. Para ser mais preciso, o monstro alimenta-se da minha dor, sofrimento e tristeza interna."
É isto que quer apresentar. Se formos mais a fundo, vemos que até bate certo com os registos dos dias anteriores. Raios, já fez uma página. Ainda tem mais umas coisas a escrever, logo começa a escrever na página do lado:
"Pensando bem, isso explica porque é que o monstro apareceu durante muito tempo nos primeiros dias e, daí, foi apenas diminuindo. Até porque, como nos primeiros dias, ainda estava com memórias claras daquele dia, a criatura ganhou mais poder e conseguiu-se mostrar por mais tempo. Mas, como, com o passar do tempo, esses sentimentos foram enfraquecendo, ele foi perdendo poder e ficou cada vez menos tempo presente a atormentar-me. Contudo, vale a pena notar que ele esteve sempre presente, pode ter sido por pouco, mas apareceu todas as noites, uma vez que, na minha cabeça, estes sentimentos e memórias também estiveram sempre presentes, mesmo que não diretamente, podem também ser levados para o fundo da minha mente para serem reproduzidos. Não gosto de ser muito pessoal, mas sinto que também é por isso que agora, ou melhor, ontem, ele apareceu, novamente, durante um maior intervalo de tempo. O aniversário da morte da minha mãe aproxima-se e naturalmente, essas memórias têm aparecido mais recorrentemente na minha cabeça. Saíram do fundo da minha mente e voltaram à primeira fila. Ainda por cima depois do incidente da manhã, só consigo prever que hoje e especialmente amanhã, as coisas só vão piorar. Porque a dor que sinto agora é apenas proporcional à que senti quando a minha mãe morreu. São por essas razões que prevejo que o monstro noturno esteja mais forte e, quem sabe, no pior dos casos, pode até parar de me ver e começar a mover-se. E não há muito que não consiga fazer. Já se passou um ano e não consigo superar estes sentimentos. No máximo, apenas consigo controlá-los em termos de significância no coração. Mas se há algo que não consigo fazer é esquecê-los. Logo, terei de enfrentar esta criatura que aparecerá durante mais tempo e irá atormentar-me durante ainda mais tempo. E, se há algo que aprendi a fazer nestas situações é ligar a luz e esperar o melhor. Desejo-me sorte para os próximos dias."
...está. Ficou com a mão a doer de tanto escrever, mas conseguiu. Está tudo escrito. Tudo o que queria escrever, toda a sua tese, está escrita. Para momentos como estes é que decidiu começar a escrever neste caderno. Foi para registar padrões da criatura e, a partir deles, aprender mais sobre ela que decidiu escrever o que escreveu.
Pelo menos ficou mais aliviado. Agora sabe o que esperar. Não pode fazer muito. As memórias não desaparecerão. Elas estão sempre presentes. Como escreveu, resta ligar a luz e esperar que tudo corra bem.
Ufa! Que esforço. Não esperava que ficasse tão cansado depois de escrever. Pode-se dever ao facto de estar de férias e de estar tão desabituado ao esforço que, quando faz algo com o mínimo de esforço, fica logo cansado. Seja pelo que for, apenas tem vontade de ficar deitado na cama sem fazer nada.
E é precisamente isso que faz. Tira a manta das suas costas e coloca-a na cômoda da cama e, de seguida, atira-se de costas para cima da cama. Ah! Que bom.
Não vai dormir, no entanto. Vai guardar isso para a noite. Contudo, irá ficar ali, a olhar para o teto branco, enquanto divaga nos seus pensamentos. Cede a essa vontade e entra na sua mente apena para encontrar...
Raios. Só memórias do dia. Fecha os olhos e volta a abrir, à espera que algo mude, mas sem sucesso. Continua com as mesmas memórias, os mesmo pensamentos dos último ano, mas intensificados. É isto a que se resume a sua vida: sofrimento.
Não importa o quanto se esforce, não consegue superar o passado. Sabe disso e aceita a derrota, contudo, não quer que seja por isso que possa perder a vida para um monstro. É por essa mesma razão que cerrou o punho e decidiu o que ia fazer nos próximos dias.
Mas até esse dia chegar ele...
...começa a cantarolar.
De boca fechada e usando a sua voz pouco afinada. Fica a impar as vagas memórias daquela música que o acalma. A música que o marcou.
Uma música outrora cantada para o acalmar. Uma música cantada para o fazer adormecer. Uma música que agora canta para se lembrar de momentos mais felizes.
Para o levar a memórias felizes de quando tudo era mais simples. De quando era criança. De quando a sua mão ainda estava viva. Quando aquela criatura, aquele vírus...era nada mais que um mau sonho.
Esses são as coisas de que sente falta. Aqueles pequenos momentos. Agora percebe que aí era verdadeiramente feliz.
Felicidade. Ora aí está uma palavra que não pensa há muito tempo...
Damian ia no carro com Sarah. Já tem os papéis que necessitava. Agora, só necessita de ir para casa.
Sarah: "É aqui a tua casa, não é?"
Pergunta ela com o carro parado à entrada da moradia de Damian.
Damian: "Correto, é aqui mesmo."
Confirma ao tirar o cinto.
Sarah: "Devo dizer que gostei da tua companhia hoje. Embora tenhas me deixado à espera durante bastante tempo."
Damian: "Pois...desculpa lá por isso."
Pede desculpa, com vergonha.
Sarah: "Não precisas de pedir desculpa."
Diz, corando.
Sarah: "A tua sorte é que já te conheço há um bom tempo. Senão, já terias levado uma boa porrada."
Damian: "Recuso a oferta, acho que já levo porrada o suficiente."
Ela ficou sem entender o comentário um tanto quanto mórbido. Ignorando o que ele disse, ela continua a despedida do dia, voltando as bochechas a uma cor normal.
Sarah: "Num dia destes, sabes...gostarias de ir jantar comigo ou algo assim?"
Faz ela a pergunta, nervosa quanto à resposta.
Damian olha-a com uma cara de alguém que estranha a situação. Queria ela confessar-se para ele? O tipo já estava a prever que o interesse dela fosse romântico, embora o tempo que tivesse passado com ela até então não indicasse tal.
Assim, ele responde:
Damian: "Está bem. Vou lá estar. Mas é bom que sejas tu a pagar, pois eu não tenho dinheiro. Ah! E espero bem que não seja uma confissão de amor da tua parte. Se esse for o caso aviso já que não estou interessado."
Meio rude. Mas ao menos mostrou interesse na proposta. Sarah é que se sentiu um pouco insultada pelas últimas coisas que ele disse. No que é quele estava a pensar?
Em resposta, Sarah diz levemente indignada e já cansada de o aturar:
Sarah: "Não seu idiota. Eu tenho outras intenções. Prefiro guardar de segredo o assunto, mas...queres depois de amanhã?"
Damian: "Sim, parece-me bem."
Responde, pensando exatamente o oposto na sua cabeça. Pois...podemos dizer que existem outras preocupações. Ainda assim, não é por isso que lhe cairão os parentes na lama.
Sarah: "Então está decidido."
Damian sai do carro, assegurando-se que leva tudo consigo. Ele acena um adeus para Sarah que vai no carro, mais alegre do que o normal. Só Damian é que não percebe o porquê.
Ele vira-se para a moradia. O seu filho está lá dentro. Esteve preocupado com ele por todo o dia. É agora o momento de o finalmente ver.
Ia dar o primeiro passo quando...
Voz misteriosa: "Olá, Damian."
Uma voz familiar chama por Damian. O mesmo petrifica no momento. Nem quer acreditar no que está a acontecer. O que mais temia está prestes a tornar-se realidade.
O escritor do "The Right" vira-se para trás e vê, do outro lado da rua uma figura que viu de manhã.
Ner: "Nem imaginas o quão feliz fiquei por ver o carro a passar e, ainda por cima, tu estavas lá."
Não sabe o que dizer. Não tem o que dizer. Só sente uma única coisa. Um só sentimento. Um que já sentiu neste dia, mas não tão intensamente: medo.
Damian: "C-Como é que descobriram onde vivo?"
Ner: "Basta seguir-te. É assim tão simples. Mas quero que te lembres que nada disto teria acontecido se nos desses o que nos é devido."
Foi uma referência à razão de ele ser perseguido. Damian está a tremer, da cabeça aos pés. Não sabe o que fazer. Não consegue lutar contra o grandalhão.
Ner olha para os dois lados da rua e cruza a estrada. Em passo fortes que salientam a dureza das botas que está a calçar. O som que elas fazem com cada passo é de fazer o sangue borbulhar.
Ner: "Ora bem."
O alto homem chega ao passeio onde se encontra Damian e olha nos olhos do mesmo.
Ner: "Vamos lá tratar de ti."
Num beco, de joelhos, encontra-se Damian. Uma esquina escura, suja e cheia de poças de água das recentes chuvadas. É um espaço interstício entre as habitações. Provavelmente, ninguém lá foi há uns bons anos. Deve ser por isso que estes rufias decidiram tirar proveito desse facto.
O nariz de Damian está a sangrar. Um fio de sangue desce pelo seu nariz como se fosse uma teia de aranha prestes a manchar o seu fato. O seu corpo está todo dorido, Se não o estivesse isso é que impressionava. Como se não bastasse o dia cansativo, ainda tem que levar com estes criminosos.
Nos últimos instantes, Damian, neste beco amaldiçoado, tem sido espancado e pontapeado pelas pessoas que agora o rodeiam. São por volta de umas 15. Todas elas têm mau aspeto. Carregam facas, bastões de metal, punhais de aço e alguns até uma pistola. Sem dúvida que são criminosos.
À frente de Damian estão os dois líderes destes bandidos. Eles que estiveram a observar cada soco e pontapé dado no escritor do "The Right". Um dos líderes deste grupo criminoso é precisamente o homem alto e encorpado que encontrou Damian na manhã, Ner. Já o outro ainda não tínhamos visto. O homem de estatura média, cabelos compridos loiros e barba castanha que se encontra ao lado de Ner é o capitão desta gangue.
Ner: "Acho que já chega, Damian, não?"
Sugere Ner, segurando um taco de golfe na mão direita.
Damian: "Digam-me vocês. Para mim, já chega de porrada por hoje."
Ner: "Sim, a gente acaba a sessão, mas, para isso, precisas de nos dizer onde está o dinheiro."
Damian: "E eu já disse que não o tenho. Se querem que vos diga a minha opinião, estão apenas a perder tempo com estas perseguições fúteis e espancamentos sem propósito."
Ner: "Obrigadinho, mas não queremos saber da tua opinião. O problema é teu. Tu é que és o endividado aqui. Se não o tens, então naturalmente as sessões de espancamento continuarão."
Damian cospe um pouco de sangue que guarda na boca. Foi de um forte soco que levou de um dos bandidos que agora o rodeiam. Tem de admitir, eles são mesmo fortes. Um trinca espinhas como ele não tomaria conta nem de um numa situação de combate corpo a corpo.
O escritor do "The Right" fica sem responder. Não necessariamente por ter ficado sem resposta, mas porque ficou a olhar para a poça de água à sua frente. Ela que mostrou o seu reflexo. O reflexo da pessoa ferida que é e da qual não se orgulha muito. Só queria uma vida normal com o seu filho.
Ner: "Como vai ser?"
A pergunta acorda Damian de volta para a realidade. Ele tira o olhar da poça e indignado olha nos olhos do inimigo.
Damian: "Já disse e vou voltar a repetir. Não tenho os 100 000€ que tanto querem."
Ner: "Estou a ver..."
O brutamontes vira a sua cabeça para o lado. Ele olha para o seu capitão, dando a entender que é a sua deixa.
Ner: "Que me dizes Iza?"
Iza: "Sim?"
Perguntou, ao mesmo tempo que descascava uma laranja com a ajuda de uma faca. Não parecia lá muito interessado na interrogação em mãos. Isso até irritava alguns dos seus capangas, então imaginem quem é inimigo dele.
Ner: "Já sabes, se fosse por mim, matávamos este gajo e mostrávamos como é que a nossa gangue funciona. Mas, como sou o vice-capitão não tenho a palavra final. Por isso, diz-me como capitão e líder da gangue o que achas desta situação?"
Ele não responde. Está mesmo difícil descascar a laranja. O homem está a fazê-lo há uns 10 minutos, desde que a sessão começou. Vale acrescentar que está mesmo concentrado.
Isso irrita mesmo Damian. Esteve ali a sofrer e a sangrar para caramba e o líder destes sacanas nem lhe olha na cara uma vez que seja. Não existe maior ato de desrespeito. Deixando que a raiva o consuma, Damian solta um comentário:
Damian: "Pois, também estou curioso para saber a tua opinião."
Este simples comentário da vítima foi o suficiente para o capitão tirar os olhos da laranja e encarar Damian com um olhar que pressagia a morte. Foi neste momento que Damian começou a arrepender-se do seu comentário.
Iza: "Com que então queres a minha opinião."
Damian engole em seco. Mas, já que o encara mal, vai até ao fim.
Damian: "Sim, estava a achar esquisito não teres falado nada."
Iza aumenta a distância entre a lâmina e a fruta.
Iza: "Não sei se pudestes ver, mas estava ocupado."
Damian: "Ai, ai, ai."
Iza: "Algo de mal?"
Damian: "Na época da escola eras muito mais fixe."
Uma clara provocação de Damian. Sabe que não os pode vencer. Também não irá entrar numa luta com eles. Só está a fazê-los perder mais tempo. Para Damian, isso já é uma vitória.
Já Iza ficou claramente fulo com o comentário. O ego dele é assim tão grande. Damian sabia disso e usou o seu ego contra ele. Caiu direitinho na armadilha.
Iza: "Isso é o que tu achas de mim. Se queres que te diga, sempre me achei impecável."
Damian: "Acredita em mim, naqueles tempos em que eu e a minha futura mulher brincávamos contigo eras mesmo porreiro. Eram bons tempos. Fartávamo-nos de brincar às escondidas. Tu, por exemplo eras sempre o melhor a jogar futebol. Lembro-me bem desse facto."
Os outros membros da gangue começavam a ficar confusos com a conversa. Mal conheciam Iza, o líder deles. Apenas Ner tinha uma ideia do tema de conversa. Lembra-se de Iza ter falado sobre tal numa noite em que foram beber e a palavra saiu da cabeça. Ainda assim, não parece feliz por ver o que se está a desenrolar. Nem os capangas de Iza gostam de vê-lo a dar-se bem com o inimigo que lhes deve. Humm, acho que a explicação ficará para depois, mas é mais profundo do que vocês pensam que é.
Por outro lado, o líder da gangue dá um leve sorriso. Tentou contê-lo, mas não conseguiu. Aquelas memórias são repletas de nostalgia. Lembranças de um tempo mais simples. De novo, Damian tem sempre uma boa estratégia para os fazer perder tempo.
Iza: "Eh. Foram bons momentos."
Damian: "É que foram precisamente estas memórias que sequer me trouxeram até ao presente. Caso contrário, nunca mais tinha trabalhado contigo."
A conversa volta ao mesmo caminho, para o agrado dos capangas e de Ner, que podem voltar a concentrar todo o seu ódio em Damian. Por falar nele, Damian só precisou de baixar a guarda de Iza para o voltar a insultar como sempre.
Damian: "Espero que fiques com este facto bem ciente nessa tua cabeça arrogante: nunca te devia ter pedido mesmo nada."
O líder do grupo volta a um tom sério. A sua expressão vai de feliz a sisuda. Não vai deixar que isto continue por muito mais.
Iza: "Dizes tudo isso e, ainda assim, aqui estás."
Iza vai até ao centro do círculo formado por seus capangas. Ele olha Damian de cima e continua a conversa.
Iza: "Bem sabes que tudo o que faço não é por mim. É para honrá-lo."
Damian: "E tudo o que faço é com o objetivo de honrar a memória da minha mulher. No entanto, tenho também a cabeça no presente. Eu tenho também o meu filho em mente."
Iza para por um momento com a declaração de Damian. Aqueles são os seus ideais. Nunca Iza pensou que eles fossem assim. Válidos, mas...
Iza: "Ok, se tu o dizes...se bem que não me pareces ser assim tão fiel a essas palavras. É que eu sei que o que faço é errado. Esta vida de criminoso...vida de violência. Quantas vidas foram feridas, algumas tiradas e tudo...por dinheiro. Ao menos reconheço isso. Já tu permaneces teimoso a acreditar que está tudo bem. Nessa tua ilusão, esse teu mundo onde até os meus atos podem ser perdoados. O que me parece um pouco hipócrita, não achas?"
Damian: "Então vamos mesmo ignorá-lo. Pois agora é que te sentes mal pelos teus atos?!"
Iza: "Sempre me senti. Até parece que mato todos de bom grado."
Damian irrita-se. Só uma menção dela foi o suficiente para o cobarde escritor do "The Right" se levantar e encarar Iza nos olhos, ao mesmo nível.
Vários homens preparam-se para combate, esperando o pior. Até Ner se prepara para combate.
Tem aqueles homens todos erguendo as suas armas. Numa demonstração de intimidação alguns até as apontam para o homem no centro. Aquele que lhes deve dinheiro. Mas...
Iza: "Quietos!"
Grita ele para todos, assegurando-os de que está tudo bem.
Muitos baixam as armas e continuam a ver o desenrolar da conversa. Fazem-no é um pouco contra as suas vontades. Até Ner o faz. Por muito que queira matar Damian, as ordens de Iza são absolutas.
Damian: "Fala mal de mim o que quiseres, Iza, mas deixa a minha mulher fora disto."
Ele está tão sério. Olhar tão penetrante. Até Iza se sente intimidado. Quem diria que o fraco Damian podia transparecer medo. Iza também vai ter que se impor.
Iza: "Sabes que mais, chega de desculpas. Ou tens o dinheiro ou não. Estás para mo dar há muito. Não sei o que fizeste com tanto dinheiro, mas fica a saber que já não vou permitir que mo pagues aos poucos como se fossem prestações."
Iza respira um pouco antes de fazer o seu ultimato:
Iza: "Tens 48 horas. Compreendo como é um dia importante para ti. Encontramo-nos aqui. Se não vieres com 5 minutos de tolerância, viramos a esquina e vamos prestar uma visitinha ao teu filho."
Damian ficou com o sangue a ferver. Não aguenta ameaças, quanto mais a pessoas que lhe são queridas.
Para ele, a família sempre foi o mais importante. Mesmo assim, ele dá o seu melhor e tenta suprimir o máximo de emoções possíveis.
Iza: "Muito bem, tenho que ir andando."
O líder dá meia volta e começa a andar para fora do beco, dizendo:
Iza: "Que tenha ficado claro o que acontece se não nos pagares. Até à data marcada não te perturbaremos, por isso é bom que nos dês o que deves, Damian. E desta vez não estou a brincar. Desta vez, não vou voltar atrás com a minha palavra."
Iza sai do beco, seguido do resto dos seus capangas, tal como Ner. Eventualmente, a zona fica vazia e Damian lá sozinho.
Como se já não tivesse preocupações suficientes. Parece que o mundo está a fazer o máximo para o lixar. Não pode fazer nada.
Não conseguirá arranjar o dinheiro. Só lhe resta uma opção: lutar pela sua vida e do seu filho. É o mínimo que pode fazer, afinal, prefere morrer a lutar do que morrer subserviente àqueles sacanas.
É então que...
*Plim*
Lentamente, elas começam a cair.
*Plim* *Plim* *Plim*
Gotas de chuva que caem cada vez mais.
*Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim*
Em pouco tempo, o que foram só pequenas gotas, surgem com maior frequência, caindo incessantemente.
Damian é atingido pela chuva dos céus. Pingo atrás de pingo molha cada vez mais o seu fato.
O seu rosto também é atacado. Gotas caem na sua cabeça, escorrendo até o seu queixo, onde se aglomeram até caírem no chão.
*Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim* *Plim*
Não parece acabar assim tão cedo. Assim sendo, está decidido. Agora, precisa de voltar para casa.
Damian olha no relógio do seu pulso direito, molhado com a água, e vê que já passa da hora de jantar.
Ele recompõem-se e sai do beco.
A porta de casa abre-se. Lá de fora vem o pai da família de regresso.
Damian: "Voltei!"
Grita Damian de modo a anunciar a sua chegada a Jeff. Contudo...
Damian: "Jeff?"
Ele não está à vista. Imediatamente, o coração de Damian acelera.
Damian: "Jeff! Onde estás?"
Começa a estressar ainda mais. O que é que se está a passar? Este dia...o que é que Deus quer?
Damian: "Jeefff! Onde estás? Respon-"
Jeff: "Estou aqui, pai."
A voz de Jeff acalma-o logo. Damian vai até às escadas atrás do sofá que levam até ao andar de cima. Foi daí que veio a voz de Jeff. E ele vê...
Damian: "Jeff...estás aqui."
Ao cimo das escadas, está Jeff. O seu filho está a salvo. Não há nada para temer. Por isso, acalma-se e faz de tudo para esconder o estado estressado em que se encontrava.
Damian: "Graças a Deus..."
Exclama aliviado, com a mão direita sobre o seu peito.
Jeff: "Está tudo bem, pai? Parecias demasiado histérico e estás...molhado."
Damian: "Sim, o pai só teve um dia cansativo no trabalho."
Responde, tentando ocultar o incidente com a gangue do Iza. Isso é algo de que ele não pode saber. Nunca soube e nunca saberá.
Jeff: "Ok, então. Vou dormir."
Damian: "Não vens jantar?"
Jeff: "Estou sem apetite."
Damian: "Olha que ia fazer pizza."
Jeff: "Logo como amanhã ao almoço. Agora, gostaria de ficar sozinho, se não te importas."
É esquisito da parte do seu filho. Nunca se comportou assim. Algo de estranho se passa e Damian sabe disso. Inquiri-lo-ia mais, no entanto, tem trabalho para fazer e outras preocupações em mente. É difícil admitir, mas, de momento, os problemas de Jeff têm de ficar em segundo plano.
Jeff vai até o seu quarto, saindo da vista do seu pai.
Damian: "Adoro-te filho. Se precisares da minha ajuda é só pedires. Isso inclui se tiveres outra situação de pesadelo. E alegra-te, pois amanhã é o teu dia especial."
Jeff nem vê o pai e vice-versa. Damian disse-o não por obrigação, mas porque realmente o ama. Isso dói mais a Jeff do que qualquer outra coisa. Só de saber que nunca conseguirá retribuir aquele amor que o seu pai por ele sente. Tudo por lhe estar a ocultar estas ocorrências com a criatura e o incidente da manhã. Tudo para lhe proteger e não o deixar com mais problemas.
Damian: "Jeff?"
Jeff: "Sim, também te adoro, pai. Amanhã logo celebramos."
Sem aguentar mais um segundo, Jeff rapidamente entra dentro do seu quarto. E ali estava ele. Sozinho outra vez.
Damian vai até ao sofá e senta-se. Sabe mesmo bem. Depois de um longo dia de trabalho, sentar-se naquele sofá e a melhor recompensa.
Mesmo bom. Com o corpo confortado, a sua mente começa a trabalhar. Começa a pensar no dia e nos momentos que mais o marcaram: o encontro com Tren, o convite de Sarah e...a sessão de espancamento com a gangue de Iza.
É verdade, como é que vai sobreviver? Este ultimato de Iza não tem lugar para onde se escapar. Será...será este...o fim.
Não consegue fugir desta. Arranjou desculpas e conseguiu perdurar a dívida o máximo possível, ainda assim, tudo eventualmente chega a um fim. E este fim vai alcançá-lo a ele e ao seu filho.
Tudo culpa sua. Tudo porque não fez um trabalho bom o suficiente.
Damian: "Que sono..."
Fracassou em tudo. Como marido, escritor e até pai. Não conseguiu cumprir um destes papéis. Um que fosse.
Só se está a esquecer de uma coisa. A luta ainda não acabou. Pode não conseguir arranjar o dinheiro, mas pode tentar proteger a sua família, o seu lar.
Exatamente. Já se decidiu. Amanhã, comprará uma arma. Vai usá-la para rebentar os miolos aqueles tipos. Diria isso se as coisas fossem assim tão fáceis. É claro qur a vida não é fácil.
Há um problema: não se acha capaz de matar. Não é necessariamente por Iza ser seu amigo de infância, mas mais pelo facto de achar o ato de matar nojento.
Afinal, considerar-se-ia um idiota ao matar alguém da própria espécie. Não é só uma questão de dignidade, mas também de ética. Não acha correto fazê-lo. Não quer fazê-lo. Prometeu a alguém que ia tentar ser a melhor versão de si mesmo e não quebrará a sua promessa por nada.
Damian: "Nunca me disseram que este sofá era tão confortável..."
O sono está a chegar. Pensamentos do género desaparecem. As gotas da chuva a baterem no teto de casa tranquilizam-no.
Pensando bem, é melhor descansar. Amanhã é outro dia em que poderá fazer a diferença.
Sim, é melhor. Aconchegando-se mais no sofá, Damian fecha os olhos e, antes que soubesse, já estava a dormir.
Raio do sofá e do som da chuva. Tão confortável e tranquilizante que o deixou rapidamente a dormir. Nem chegou a jantar a maldita pizza. Uma pena.
Jeff encontra-se no quarto. Luzes apagadas e olhos abertos.
Jeff: "Espero estar errado."
Diz, sussurrando.
Lá se encontra a figura. Adiante, escondido na escuridão, junto à parede, ao pé da porta. Tal como ontem. Acabou de se deitar na cama. Esperava que hoje conseguiria dormir, mas, pelos vistos, foi demasiado otimista.
Ao longo desta semana, a criatura não o deixou em paz um dia que fosse. Há meses atrás, o monstro só aparecia por uns minutos, em alguns casos, até segundos. Mas já se passam 10 minutos e ele ainda não desapareceu. É como se, com o tempo, ele tivesse intensificado a sua presença. Tal como previa, a teoria, infelizmente, confirma-se.
Por enquanto, ele está parado. No entanto, se tudo for como ontem, ele certamente tentará aproximar-se. Não, está certo disso. O monstro vai aproximar-se dele. E será a primeira vez que isso acontecerá. Será como consequência do facto de nunca ter sentido uma dor tão grande.
Vê-o há anos e ainda não tem a certeza se trata-se de uma ilusão ou é mesmo real. Gostava mesmo de saber, pois, não importa o que aconteça, esta figura está sempre a atormentá-lo.
Surge nos seus pensamentos, à noite e até nas poucas vezes em que sonha e tem um pesadelo. Maldito seja. Maldito seja. Maldito seja.
Jeff: "Maldito seja."
Os pensamentos começam a escapar-lhe da cabeça. Ele atentamente observa a figura. Tudo porque tem medo. Medo do que fará e do que poderá trazer à sua vida.
Teme que ele se mexa um centímetro que seja. Só a mera presença daquele...monstro...é o suficiente para deixá-lo a tremer, como está agora. Por muito que já esteja acostumado à presença daquela coisa, não consegue parar de sentir medo.
Só que, a criatura não segue o desejo de ninguém.
De forma lenta e torturadora, o pé grande, grosso e inumano do monstro é erguido. Cada centímetro erguido, cada segundo em que a sua pata se ergue vem acompanhada com um som metálico.
*Clank* *Clank* *Clank*
Um som alto e irritante. Metálico. Parece uma engrenagem ferrugenta.
*Clank* *Clank* *Clank*
Não para. É incessante.
*Clank* *Clank* *Clank*
O som começa a infiltrar-se na cabeça de Jeff. Pouco a pouco. Num processo doloroso e inconsciente.
*Clank* *Clank* *Clank*
*Clank* *Clank* *Clank*
Não para. Parece que o tempo está a andar mais lentamente. O ato dura menos de um segundo, mas parece ter durado uma ano.
*Clank* *Clank* *Clank*
*Clank* *Clank* *Clank*
*Clank* *Clank* *Clank*
Sem que dê por isso, o som infiltrou os seus pensamentos.
*Clank* *Clank* *Clank*
*Clank* *Clank* *Clank*
*Clank* *Clank* *Clank*
É então que...
A figura pousa a pata.
*Clank*
Um último som marca a sua descida até ao chão. Mas ainda não acabou. Ela prepara-se para dar mais dois passos. Levanta de novo o pé e come-
*Plimp*
A luz da mesa de cabeceira é ligada. Jeff fê-lo.
O rapaz está despenteado. Olhos mais vermelhos do que o normal. A respiração está um pouco acelerada, mas não está a ofegar.
Não aguentava o som. O som. Aqueles sons mecânicos intermináveis. Pareciam nunca acabar. Não conseguiu resistir.
Usando pura força de vontade, ele tomou coragem para ligar a luz da mesa de cabeceira. Felizmente, teve força o suficiente. Sabe lá o que teria acontecido se a criatura se tivesse aproximado mais. Talvez perdesse não só a cabeça, como também a sua vida. De qualquer forma, não queria descobrir experimentando.
Isto começou a fazê-lo suspeitar de algo. No entanto, tendo em conta o que aconteceu ontem e na manhã. É capaz.
É bem possível que a luz seja uma fraqueza da criatura. Pelo menos, sempre a afugentou. Mais vale manter esse facto em mente. Por hoje, dormirá de luz acesa, tal como fez ontem e nas primeiras aparições deste bicho.
Mas agora deixa de pensar em fraquezas. O cansaço voltou. Nada lhe corre bem. O som, aquele som, desgastou-o mentalmente. Tanto que, com o desparecimento do monstro e da adrenalina do momento, o seu corpo desistiu.
Ele coloca-se em posição fetal. Sem saber o que fazer e perdido. É apenas um miúdo. Um rapaz que tem de enfrentar estas criaturas. Pode chamar o seu pai, mas...não, não quer ver outra pessoa a morrer. É agora que se lembra o porquê de nunca lhe ter contado a verdade. Gosta de pensarq ue isso acontecerá num dia. Contudo, sempre que pensamentos do género lhe vêm à cabeça, também vêm pensamentos daquele dia. Estes últimos são suficientes para o fazer desistir e escolher lutar sozinho contra o sobrenatural.
Enfrentará o monstro sozinho. Só que...é tão difícil. É tão difícil ser só um rapaz contra uma criatura aparentemente sobrenatural. O mundo é tão grande, tão perigoso e ele uma criança, tão pequena, tão sozinha, tão...fraca.
Nisto tudo nem se apercebeu. Sentiu algo molhado no seu rosto. Outra vez. Já está a chorar. Nem se apercebeu. Ele limpa as lágrimas e elas voltam logo.
Existem forças neste mundo difíceis de impedir. O medo e a tristeza são alguns deles. Ambos sentimentos fortes capazes de nos controlar e condicionar os nossos atos.
Porém, nenhum destes sentimentos é mais forte que o cansaço. Oh, sim! Este é maior do que todos os outros e prova viva disso é Jeff. Quer dizer, vocês querem exemplo melhor do que agora?
O puto estava todo depressivo há uns segundos. Com o cansaço, esse tormento não durou muito e ele logo adormeceu. Foi assim tão simples. Assim se leva um rapaz a adormecer.
E, assim que chegou o sono, a única coisa que viu a seguir foi-
VERMELHO.
Vermelho.
A cor vermelha.
Forte.
Escura.
Viscosa.
Parecendo viva...
Derramada sobre uma superfície que tinha outro espírito há momentos antes de...
...o VERMELHO chegar.
...
...
...
Antes de sangue ter sido derramado.
...
O sangue que, por sua vez...
...atraiu-a.
Fez cair o peluche...
...aquele que tinha como dono o seu filho.
O urso oferecido por aquela deitada no chão.
Ele que foi devolvido a quem o deu à criança.
Tudo debaixo do olhar dele...
Jeff: "..."
O rapaz.
A criança que ele não conseguiu impedir de ver...
...as consequências da sua fraqueza.
As consequências que adruinaram a vida de todos...
Até de quem o veio acudir como...
...aquela enfermeira que veio com a ambulância para lhe fazer uma rajada de perguntas.
Perguntas que ficaram sem resposta.
Para ir averiguar o que aconteceu com a criança.
Avaliações que ficaram por fazer.
Para ajudar o pai, petrificado.
Ajuda que não deu em nada.
E...
...
...
...acima de tudo...
Para tentar salvar a pessoa esparramada no chão.
Pessoa essa que estavam morta.
Damian: "..."
Damian acorda. Apenas mentalmente, pois os olhos nem quer abrir. Está mesmo bem no sofá.
Mas por outro lado, também por ter escapado às suas maquinações que...
...por muito que se tenha acostumado com elas...
...ainda doem.
Damian: "..."
De qualquer forma, se sair dali arrepender-se-á até ao dia da sua morte. Pelo menos pensa ele. Talvez esteja a exgerar um pouco a situação.
A cada segundo que passa, a sua voz da razão pergunta: "que horas serão?"
É o seu sentido de responsabilidade a falar. O mais correto seria segui-lo, mas Damian parece que não cresceu nada. Existem alturas em que Jeff chega a parecer mais adulto que o próprio pai.
Mais segundos passam. Segundo atrás de segundo atrás de segundo. E o seu eu interior continua e continua a perguntar.
Por muito que queira ficar naquele sofá, a sua voz interior está a irritá-lo de uma maneira que está quase a acordar só para calar este seu eu.
O tempo continua a passar. Ele não para por ninguém. Damian é só mais um.
As perguntas não param. Os nervos do adulto começam a chegar a um limite. A sua voz da razão começava a tornar-se irritante.
E com cada pergunta este ódio ia aumentando. Cada vez mais com cada interrogação.
Cada. Vez. Mais. Com. Cada. Pergunta. Até...
Damian: "Está bem, está bem, eu vou acordar."
Fala para si mesmo, no preciso instante em que abre os olhos e se levanta.
Na sua cabeça são por volta das 5 horas da manhã. Isso é mais ou menos a hora a que acorda. Se assim for estaria tudo ótim-
Damian: "O QUÊ?!"
Só quando olha para o relógio que se esqueceu de tirar do pulso é que vê a situação em que se encontra.
Foi uma reação instantânea. Nem lhe veio à cabeça o facto de que poderia ter acordado Jeff com aquele grito.
Mas chega de pensar em outras coisas. São-
Damian: "São 7 horas da manhã!"
Exatamente. Como eu ia dizer, ele está bastante atrasado. Há esperança, contudo. Só conseguirá chegar a tempo se fizer tudo à pressa. Em outras palavras, está lixado.
Damian: "Porquê?"
Ele agora é que fazia as perguntas. Só lhe aconteciam coisas más.
Também escolheu o pior momento para fazer estas perguntas.
Rapidamente, ele vai até à casa de banho do andar de cima e coloca a pasta de dentes na sua escova.
Com isso, esqueceu-se que deveria tomar o pequeno almoço primeiro. Assim, lá foi andando para o andar de baixo.
Foi até à cozinha e tirou do frigorífico duas panquecas congeladas. Estava sem tempo para as colocar na tostadeira velha e descongelar a comida. Por isso comeu assim mesmo aqueles pedaços de pedra disfarçados de panquecas.
Depois de testar a força dos seus dentes no pequena almoço mais sem cor da sua vida, ele voltou a subir as escadas.
Ele volta à casa de banho e lava os dentes. A seguir, o pai despe o seu fato às pressas, deixando as suas roupas na pia e vai tomar banho.
Damian toma um banho...deixo-vos adivinhar...também às pressas. Apenas lavou o corpo. Esqueceu-se do champô e do creme para a cara.
Quando acaba o duche de chuveiro, nota que se esqueceu de trazer a toalha para perto de si. Como tal, foi em passos apressados e despido buscar uma toalha que estava estendida junto do corrimão do cimo das escadas.
Damian coloca a branca toalha à volta da parte inferior do seu corpo e vai até ao seu próprio quarto.
O pai da família pega num fato novo azul-escuro e veste-o, ainda com o corpo molhado. As peças de vestuário custaram a entrar, mas entraram.
A correr, mas cuidadosamente, ele desce as escadas, pega as chaves na mesa da sala, sai pela porta e tranca-a à chave.
E então...vai com o coração na mão. Com uma enorme ânsia e esperando que as aylas de educação física lhe tenham servido de alguma coisa. Ele respira fundo e vai a correr.
Nunca se pensou a fazer isto. É embaraçoso e uma visão que pode passar uma má imagem. Felizmente, ninguém estava acordado para o ver.
Nem notou no céu ainda nublado. Embora hoje não parece que vá chover.
Motivado e não se importando com nada, ele vai seguindo. Acelerando, movido à sua determinação. Nada o pode parar.
A corrida foi longa. Passou pelos cubículos e viu as mesmas pessoas de sempre a fingir que trabalhavam, mas nada disso impprta agora. Chegou a tempo, mas exausto. Foi à casa de banho ajeitar-se antes de se pôr a trabalhar e está apresentável.
Sente uma leve dor de cabeça. Deve ser do improvisado e inesperado sono no sofá. Ou talvez o cansaço da corrida. O suor é nítido na sua testa. A gravata está direita, mas tem os atacadores de um dos sapatos desatados. Nem ele notou nesses detalhes. E também espera que ninguém note.
Escreve sobre outro artigo, pois o de ontem não tem informação alguma. Agora escreve sobre a bolsa de Nova Iorque. Será um artigo de pouca importância, mas nada pode mudar.
Quer ver se despacha o trabalho o mais rápido possível. Afinal, é o aniversário de Jeff.
Ele escrevia e escrevia sem parar. Hoje acordou mesmo inspirado. Ou talvez só estivesse com pressa.
Digitava muito bem no teclado quando começa a ouvir passos.
*Plonk* *Plonk*
São sapatos duros. Fazem um barulho alto que desconcentra qualquer funcionário. Damian chega a tirar os olhos do ecrã.
*Plonk* *Plonk*
Devem ser saltos altos. Nenhum outro sapato seria capaz de fazer um barulho do género. Não é que Damian fosse especialista na matéria, mas foi uma suposição óbvia e lógica.
*Plonk* *Plonk*
Os barulho dos passos está cada vez mais alto. Seja quem for, está a ficar cada vez mais perto.
Quem poderá ser?
*Plonk* *Plonk*
Damian não aguenta a curiosidade (para variar) e levanta-se para ve-
Sarah: "Damian! Estás com ar de quem correu uma maratona."
No preciso segundo em que se levanta, o som parou.
A secretária surge. Era ela quem andava de saltos altos. Pelos vistos, estava à sua procura. Que quereria?
Damian: "O-Olá...Sarah. Apanhaste-me de surpresa."
Diz, tendo sido apanhado desprevenido e tentando se desviar do assunto. Se Sarah viesse a saber o que aconteceu de manhã, nunca mais a conseguiria encarar para sempre.
Sarah: "Bom, já vi que estavas focado no trabalho. Importas-te de me seguir? Prometo que será rápido."
Outra surpresa.
Damian: "Sem problemas, mas, ao menos podes dizer-me aqui para onde me queres levar?"
Sarah: "O Daniel requisitou-te."
Damian: "O-Ok, mas porquê?"
Sarah: "Chega de perguntas."
Pede, já um pouco irritada. Já está a dar ao escritor do "The Right" más memórias.
Sarah: "Estamos em trabalho. Lá fora podemos ser amigos, mas aqui, somos só trabalhadores."
A lição ficou na mente de Damian. Não só por respeito à sua amiga e colega, mas também com medo que ela se vá zangar, caso ele não cumpra as suas recomendações.
Sarah vira as costas a Damian.
Sarah: "Vem comigo."
E ela começa a caminhar. Damian está hesitante. Com algum medo até. Tem de a seguir com o atacador de um dos sapatos desatados. Não pode fazer muita coisa senão segui-la e rezar para que Daniel não tenha nada de mal para lhe dizer. Vejamos...
Os dois chegam à porta do escritório do Diretor, como se a placa à entrada já não tivesse deixado claro. Ambos viram novamente alguns trabalhadores nos seus cubículos a "trabalhar". Só que desta vez, como Sarah estava ao lado de Damian, eles ainda fingiam trabalhar.
Com isto quero dizer que mudavam a tela para um artigo que andaram a trabalahr nas últimas semanas, esperavam que eles passassem e rapidamente voltavam ao de sempre. Voltavam a não fazer nada. Bem, já é melhor do que nunca. Estranhamente é bom saber que eles ainda têm algum respeito pelos outros.
Sarah e Damian estão agora perante a tão infâme porta do Diretor. Damian nem tem coragem para levantar a mão. Sarah é que tem de fazer tudo e bate à porta, sem qualquer medo.
Sarah: "Com licença, trago o Damian, exatamente como pediu."
Lá de dentro, o Diretor parece estar mesmo ocupado. Uns bons 5 segundos passam até ele responder num grito que sai abafado para o exterior.
Daniel: "Estou ao telefone! Esperem só um pouco!"
Sim, o som saiu abafado. A acústica na parede bloqueava mesmo bem o som. Que escolha esquisita de arquitetura.
Damian: "Porque é que as paredes abafam mesmo bem o som?"
A secretária sabia mais. Não tinha a certeza se lhe devia responder, mas, como Damian era seu amigo, ela decidiu fazer dele uma excepção.
Sarah: "Segundo o que ouvi, foi um pedido do próprio Daniel quando estava a começar este negócio. Não posso dizer muito mais..."
Damian: "Bem me parecia que sabias mais."
Sarah: "Como assim?"
Pergunta, evidentemente intrigada.
Damian: "Sempre que sabes algo e não sabes se podes contar, fazes quase uma careta."
Sarah: "O quê?"
Ela não esperava esta. Querem ver que agora Damian consegue ler os outros tal como Daniel?
Sarah: "Eu faço isso?"
Damian: "Sim. Tu é que podes não dar por isso."
Sarah: "Já estás a parecer o Daniel."
Damian: "Não sou não. Ele é que é o mais inteligente."
Sarah: "Mas tu és mais idiota."
Damian: "Ei! Olha aí, sua sacan-"
Daniel: "Algo de mal por aí?"
A porta abriu-se e de lá saiu Daniel. Raios...
Não podia ter escolhido pior momento para chegar.
Sarah e Damian fazem o seu melhor para recuperar a postura séria.
Sarah: "Tudo bem por aqui, senhor."
Damian: "Digo o mesmo."
Os dois estão mais nervosos do que nunca. Até Sarah quase que começa a suar. Daqui a pouco ficará com o aspeto de cansado do colega.
Daniel percebeu que eles estavam a falar de qualquer coisa que o envolvia. Ainda assim, por ora, ignorou.
Daniel: "Vamos lá, entrem."
O Diretor voltou a entrar no seu escritório.
Sarah e Damian olham-se antes de entrar. Com esta simples troca de olhares parecem comunicar. Dizem algo do género: "esta foi por pouco".
Daniel: "Desculpem lá a demora. Estava ao telemóvel com um sócio meu. Recentemente ele tem me contactado bastante."
Informa o Diretor do "The Right" ao mesmo tempo que se senta na sua cadeira inacreditavelmente almofadada. Se ao menos as cadeiras dos trabalhadores tivessem a mesma qualidade.
Daniel: "Senta-te Damian, faço questão. Ainda por cima pareces cansado."
O escritor ignora o comentário à parte e começa a temer que algo de mal venha por aí. Quando alguém pede para que o outro se sente é porque a conversa será longa. Damian já está nervoso outra vez. A sua vida parece resumir-se a isso. Já o está a irritar.
Sem dizer uma palavra, Damian senta-se na cadeira, enquanto Sarah permanece em pé atrás de si, junto à porta.
Damian: "O que é que queria falar comigo, senhor?"
Daniel: "Não quero perder muito tempo, afinal, hoje é o dia especial de alguém."
Este comentário solto apanhou Damian desprevenido. Como é que ele poderia saber de tal?
Damian: "Desculpe por estar a perguntar, mas, como é que sabe?"
Daniel não consegue impedir-se de dar uma leve risada. A reação de Damian foi mesmo típica. O homem ficou assustadíssimo, a temer pela sua própria vida e intimidade.
Daniel: "Calma, eu não o ando a perseguir. Foi...bem, uma certa pessoa que me contou."
Tentou disfarçar a identidade. No entanto, Damian soube logo de quem se tratava. Ele olha para trás e encara Sarah.
A secretária até corou. Damian olhava-a com um olhar de decepção. Mesmo assim, não é um olhar completamente triste. Ele ainda a olha com alguma amistosidade.
Sarah: "Desculpa. Saiu-me da boca."
Diz, tentando disfarçar o deslize com um sorriso.
Para sua sorte, Damian está de bom-humor. É mesmo curioso. De um dia para o outro, podem inverter papéis. Um dia está Damian a tremer de medo de Sarah e no outro está a Saraha a tremer de medo de Damian. Que dupla caricata.
O escritor torna a cabeça para a frente e regressa à sua postura séria.
Daniel: "Diga os meus parabéns aos seu filho. Tem ar de ser um bom rapaz."
Damian: "O-Obrigado, senhor Diretor."
O Diretor está bastante simpático. Ontem foi a mesma coisa. Damian espera que hoje esteja tão bem disposto quanto ontem.
Daniel: "Mas voltando ao assunto principal. Conseguiu alguma informação ontem?"
Como temia.
Damian: "Eu fui falar com o capitão Tren. Tivemos uma longa e educada conversa, admito."
Daniel: "Conseguiste alguma informação?"
Damian: "Infelizmente, não. Tentei o meu melhor, mas o capitão disse-me que pouco sabia sobre os detalhes. Apenas sabe que enviou os três soldados para as suas mortes e pouco mais. Desculpe-me, senhor. Eu tentei, mas-"
Daniel: "Não precisas de dizer mais nada."
O Diretor leva a mão à cabeça. Parece estar a ter uma semana aturbulada. Ninguém imagina as dificuldades pelas quais ele tem passado. Consegue dizer tudo sem dizer nada em um só ato.
Daniel: "Sarah, fazes-me o favor de sair, por favor."
Um pedido inusitado. Sarah começa a temer por Damian. No entanto, não se imagina a desobedecer Daniel.
Para seu desgosto, Sarah abre a porta e sai do seu escritório.
Daniel tira a mão da sua testa e enche-se de ar que tem guardado lá no fundo. Ele expira o ar, pesadamente e começa a falar:
Daniel: "O mundo está uma maluquice, não é. Quer dizer, é com cada notícia. Uma criatura que atormenta vilas e que não tem rosto chamada Noise e que foi apenas vista por habitantes da vila. Achas mesmo que isso é verdadeiro? O homicídio de um rapaz ainda está metido no meio disso tudo. O mundo está de pernas para o ar, entendes?"
O Diretor levanta-se da sua sagrada cadeira e coloca ambas as mãos na mesa, inclinando-se para a frente. Ficou bastante claro que ele quer transmitir o seu poder através da posição em que se encontra. Damian deixa-se intimidar. Este sim, é o homem que mais controla os outros. Um manipulador nato capaz de fazer os outros executarem qualquer ação. Até mesmo o medo.
Daniel: "Essa notícia sobre a qual irias escrever parece-me ter origens sobrenaturais. É tão esquisita quanto as outras que acabei de enunciar. O que é que achas?"
Damian: "Discordo da sua opinião."
A resposta surpreendeu Daniel. Não esperava que um funcionário o contrariasse, especialmente num momento de intimidação. Esta mera resposta levou o Diretor a compreender que Damian não era um simples escritor como os outros. Pode passar a imagem de cobarde, mas parece que quando lhe tocam num ponto sensível, ele torna-se num homem corajoso.
Curioso com o que ele tem para dizer, Daniel deixa-o elaborar.
Daniel: "E o que te faz dizer isso?"
Damian: "Para te dizer a verdade, isso do sobrenatural não devem passar de mentiras. Ou melhor, explicações estapafúrdias para acontecimentos cujas causas são ainda desconhecidas."
Daniel: "Não vejo mal nenhum nisso."
Damian: "E é verdade. A princípio, não há mal nenhum em fazê-lo. Por exemplo, há anos que usamos a intervenção divina como explicação para vários fenómeno, nomeadamente o Big-Bang. Mas, depois, viemos a descobrir a verdade por trás desta grande explosão que originou o universo."
Daniel: "Continuo sem perceber o mal deste tipo de comportamento."
Damian: "Exatamente. O problema surge quando as pessoas usam o sobrenatural e o divino como desculpas para os erros que cometeram. Em vez de admitirem o erro e jurarem fazer melhor numa próxima vez, eles simplesmente culpam alguma divindidade que, pelos vistos, sempre os observou e quis mal. Isso acaba por diferenciar as pessoas de mentalidade infantil das de mentalidade adulta."
Daniel: "E tu? Que tipo de pessoa te consideras?"
Damian pausa por um pouco. A conversa entrou num tema muito pessoal. Só de pensar no passado dá-lhe vontade de chorar.
Mas, de momento, o pai e escritor do jornal suprime as lágrimas e responde à pergunta do chefe:
Damian: "Eu? Comecei como uma criança, mas acabei por evoluir para um adulto. Presumo que seja algo que a morte faz a todos, não é?"
Foi uma afirmação poderosa a de Damian. Daniel percebeu logo o porquê de estar tão emotivo. Ele referia-se à morte da mulher.
Inicialmente, ele acabava por culpar os céus e todos os deuses que lá moravam. Não admitia o seu erro. Contudo, acabou por perceber que, afinal, a culpa não era de nenhuma divindade ou do mundo, mas sim sua. Se havia alguém para culpar, era ele próprio por não ter conseguido arranjar o dinheiro. Ele sente-se culpado pela morte da própria mulher.
Até o Diretor percebeu disso e sentiu empatia pelo tal homem.
Daniel: "Os meus pêsames pela tua perda."
Diz o Diretor, enquanto a primeira lágrima começa a escorrer do rosto de Damian.
Daniel: "Nem quero imaginar a culpa que deves carregar todos os dias. Isso e o facto de, ainda assim, continuares a seguir em frente...é admirável."
O Diretor volta a sentar-se, após dizer estas palavras sentidas e vindas diretamente do fundo do seu coração. Damian continua a chorar. Quis esconder estas lágrimas, mas não conseguiu. Não foi forte o suficiente. Outra vez...
Daniel põe a mão no bolso e coloca na mesa um maço de notas.
Daniel: "Desculpa por ter trazido o tema à tona. Não foi a minha intenção deixar-te triste neste dia especial do teu filho."
O escritor levanta a cabeça, com lágrimas escorrendo nas suas bochechas.
Damian: "Não faz mal. Sei que não era a sua intenção. Já para não falar que existem outros problemas em mãos. O meu filho anda com pesadelos e eu com problemas de sono."
Daniel sorri, pois sentiu que aquela era uma resposta sincera de Damian. Isso é raro de ver. Na maior parte das vezes, chega a ser óbvio o desgosto que o escritor tem pelo Diretor. Por isso é que momentos como este chegam a ser raros.
Daniel: "Eu não o culpo pelo que aconteceu. Seria um artigo que traria muita atenção para o jornal, mas, se a informação é pouca, mais vale não arriscar a pouca e recém formada reputação que temos."
O Diretor puxa o maço de notas para o lado da mesa do convidado, fazendo o mesmo notar no dinheiro que se encontrava na mesa e que ainda não pôs os olhos.
Daniel: "Considere-se dispensado por hoje. Fique com isto. Vá comprar um bom presente ao seu filho que ele tanto precisa para se esquecer do terror que deve passar todas as noites. E você também precisa de algum tempo de descanso. Por isso, aproveite."
Damian fica incrédulo. Nem parece o Diretor a falar. Desde quando é que foi sempre tão bonzinho?
Damian: "E-Eu não posso aceitar."
Daniel: "Porque não?"
Damian: "Sinto que não o mereço."
Bem ele sabia que era um bom gesto. Apenas recusava o dinheiro, pois sentia que não era merecido. Como tal, sentir-se-ia mal se fosse pagar com dinheiro de outra pessoa. É difícil de explicar, mas Damian sentir-se-ia sujo se fosse pagar com o dinheiro de alguém.
Daniel: "Ouve, eu compreendo que te possas sentir mal, contudo, pensa neste maço e dia de folga como um agradecimento pelo teu trabalho. Sinto que tens merecido, mesmo não tendo conseguido fazer o raio do artigo. Isso não importa, pois o trabalho e dedicação que mostras é admirável. Não és como alguns sacanas que andam por aqui, tal como o Andrew. Sim, eu tenho perfeita noção do que eles fazem. Não os despeço porque sinto que o 'The Right' é um jornal tão pouco conhecido que acho que não encontraremos melhor. Por isso, acredita quando te digo que, se há pessoa que merece esta recompensa és tu."
Damian ainda quer recusar. Mas bolas! Daniel é muito bom com as palavras. Sabe mesmo dissuadir qualquer um.
Entendendo o ponto de vista do seu chefe, Damian pega no maço de notas, nervosamente e diz:
Damian: "O-Obrigado, senhor. Prometo não desapontá-lo."
Daniel: "Não tens de quê."
Ele levanta-se e vai até à porta. O escritor olha para o Diretor uma última vez antes de partir. Quer manter este momento bem claro na sua memória. Quer se lembrar naquela vez em que o Daniel mostrou ser humano.
Daniel: "Siga em frente, Damian."
Damian: "Irei."
E ele sai. Mal põe o pé fora e fecha a porta, vem a secretária ter com ele.
Sarah: "Desculpa ter contado ao Daniel sobre o aniversário do Jeff. Por minha culpa deves ter levado uma desanda e foste punid-"
Damian: "Não te preocupes, Sarah."
Ele interrompe-a e bem. A mulher já estava a entrar em pânico, julgando que Daniel o tivesse punido, de alguma forma. Já estava a ficar maluca. O Diretor pode ser mau, às vezes, mas não é mau ao ponto de despedir alguém só porque é o aniversário do seu filho.
Sarah estranha o súbito ar contente de Damian. Estava mesmo à espera que ele tivesse levado uma reprimenda do Diretor e que, depois, viesse descontar as suas insatisfações nela. Contudo, não parece que isso aconteceu.
Sarah: "Então, como é que foi?"
Ao que ele alegremente responde:
Damian: "Foi uma agradável surpresa."
A porta do quarto de Jeff está aberta. Já de lá saiu há muito. Tomou também o pequeno-almoço, mas a televisão está desligada.
Parece que, após o incidente de ontem, não vai mais ligar a televisão. Faz bem. Mais vale prevenir.
Na casa de banho, está ele, a tomar um banho de chuveiro. Não se lava há 3 dias. Muitos o considerariam de porco, mas, vale a pena relembrar que, num clima de férias, todos ficam mais preguiçosos. Para um miúdo de 14 anos não é diferente.
A água cai sobre a sua cabeça como gotas de chuva da noite anterior. Gotas estas que parecem ter parado, embora o céu ainda esteja nublado.
É o seu dia especial. O aniversário de Jeff. Um dos poucos momentos em que ele se pode esquecer da tristeza que o assombra e assombrou.
Tristemente, ele vai lavando o seu corpo de adolescente, enquanto vai impando a canção dos parabéns.
Não que seja o tipo de pessoa de cantar no banho ou de cantar, no geral. Só que, o dia de hoje, traz-lhe logo tantas memórias más que só lhe apetece cantar, como forma de deitar para fora o que guarda no seu coração.
Pode parecer um pouco esquisito. Cantar de forma triste. Isso é no mínimo incomum.
Trata-se de um hábito que ele tomou. Sempre que se sente triste, começa a impar ou a cantar, da mesma forma que a mãe fazia para o acalmar quando em criança.
O que traz esta tristeza ao rapaz é o facto de amanhã ser o 1° aniversário da morte da mãe. Logo, a felicidade so aniversário será apena temporária, uma vez que, no dia a seguir, será um dia para chorar.
Por esta razão, Jeff canta. Canta com o objetivo de se acalmar da tristeza e ansiedade que guarda quanto ao amanhã.
São quase 12 horas da tarde. O dia está a chegar ao seu ponto médio.
Enxurradas de pessoas saem das suas moradias para ir almoçar fora. Já outros preferem ficar em casa a preparar os seus típicos pratos caseiros passados de geração em geração. Ou simplesmente ficam em casa a comer uma comida instantânea qualquer.
A esta altura, caminha um homem por uma rua. Ele vai pela passadeira, ao lado dos carros que vêm de um lado para o outro.
Outros também vão nessa passadeira. Pessoas que querem almoçar ou até mesmo ir trabalhar. Cada um tem o seu destino.
Já este homem, só quer ir comer. Qualquer coisa serve, desde que lhe encha a barriga. Mas hoje quer ir comer a um restaurante de que tem ouvido falar muito bem. Dizem que, para o preço e doses, vale a pena. É esse o local aonde vai.
Este homem é um rapaz por volta dos seus 19 anos. Pele escura, com fones nos ouvidos e cabelo preto comprido em rastas. Ele vai com fones no ouvido, bastante despreocupado e alegre.
Caminhando junto aos outros, ele vê os carros que passam à sua esquerda. Isso lembra-o de que devia ter levado o carro à manutenção. Se assim o tivesse feito, poderia já estar a comer.
Mas chegava de pensar no passado. O importante é o futuro. Certo?
Ele caminha e caminha. Vira a cada esquina de modo a chegar ao seu destino. A cada esquina que passa vai perdendo cada vez mais pessoas. Vai ficando cada vez mais sozinho naquele passeio.
Cada uma daquelas pessoas tem a sua vida. Cada um tem as suas motivações, personalidades, problemas, ideais e, é claro, um destino. Isso é a vida. Um trajeto que todos seguimos, mas que, dependendo das nossas características, nos faz virar a esquinas diferentes e deparar/separar dos outros.
Querendo ou não, cada um daqueles indivíduos é o protagonista da sua própria história.
Com este homem, não é diferente.
É ele o mestre da sua vida. Possui os seus problemas, ideais, família e uma namorada.
Apenas calhou ser ele o protagonista desta cena. Por azar seu, foi vítima de um ataque. O que lhe vai acontecer, poderia ter acontecido a outro qualquer. No entanto, infelizmente, teve má sorte.
Já vai ele bem adiantado e afastado dos outros. A fome batia forte, por isso decidiu apanhar um atalho.
Ele olha para o mp3 no bolso, que lhe fornece a música para os auscultadores com auxílio dos fios.
Decide parar a música, por enquanto. Vai para um caminho novo. Não tem certeza de nada. É melhor estar atento.
Segundo o que parece, dali a 5 metros, se virar à esquerda, terá uma pequena passagem. Ouviu coisas esquisitas destas zonas.
Eram apenas rumores, mas houve relatos de assaltos e de mortes naqueles becos. Chega a ser assustador só de pensar.
Não se sabe se é verdade ou mentira, mas nunca se sabe se não tentar. A fome também o parece estar a influenciar e a vencer o seu raciocínio lógico.
Por isso, sem pensar muito nas consequências, o homem caucasiano mete o pé na escuridão do beco.
Em cada passo, a escuridão consome-o cada vez mais.
É como se o beco fosse a boca de uma besta. Um boca suja e imunda. Ainda assim, o rapaz caminha para dentro da garganta da criatura, por vontade própria.
O local parece vazio. Mais ninguém lá se encontra. Apenas ele, os papéis molhados, os sacos do lixo e as pequenas poças formadas pela chuva da noite anterior.
A cada passo que dá, mais vai se enterrando numa cova. Uma cova da qual não sairá tão facilmente.
Chegou a metade do caminho. Só mais um pouco e voltará a ver a luz. Por falar nela, já vê a luz da saída ao fundo.
Ele continua, apressadamente e temendo o que possa acontecer. Continua e continua a caminhar rapidamente. Não para. Cada segundo a menos naquele lugar é um bênção.
Já está quase a acabar. Só mais um pouco e seguirá a sua vid-
Ner: "Onde vai com tanta pressa?"
Subitamente, um homem alto e encorpado surge à sua frente. Presumo que estejam a ver quem é. O rapaz consegue parar, conseguindo não encalhar nele. Foi por pouco.
De onde é que ele veio? Ele tinha mesmo a certeza que era o único naquele beco. Estaria ele escondido? Se sim, onde? Tantas perguntas e encontra-se na pior situação para as fazer.
Ner: "Desculpa se te assutei. Estava aqui sentado, metido na escuridão, no canto, quando senti um movimento por perto. Não esperava é que fosse uma pessoa."
Fala-lhe o homem, encarando-o de cima. Uma das perguntas do rapaz foi respondida, mas o mesmo nem parecia ter notado nesse facto. A sua cabeça estava em outro lugar.
Ele encarava o homem que acabou de se intrometer com medo. Medo que estava presente em todo o corpo.
Por muito que estivesse a olhar para Ner, a sua mente estava a divagar. Ele pensava em métodos que poderia usar para sair da situação. Haveria alguma coisa que pudesse fazer?
Ner: "Tudo bem, moço?"
Ner começa a estranhar a falta de reação do miúdo. Pondera até se ele está mesmo a prestar atenção.
Felizmente, os ouvidos do miúdo estavam atentos.
Rapaz: "S-Sim. Está t-tudo b-bem..."
Nunca gaguejou tanto na vida. Aliás, nunca esteve tão nervoso. É como se a mera presença daquele tipo mudasse o seu comportamento. Mesmo se o tivesse encontrado em outras circunstâncias não conseguiria agir como o habitual.
Ner: "Há algo de mal, amigo?"
Rapaz: "N-Não, não. Está tudo absolutamente bem."
Ner: "É que parecias estar com pressa ou será apenas a minha imaginação?"
Rapaz: "..."
Fica sem resposta. Acabou de ser verbalmente encurralado. Se negar, vai fazer passar o Ner por idiota. Mas se confirmar a suspeita vai meter-se em problemas, mesmo assim. Não existe uma escolha em que vá sair bem.
Pensando melhor, porque é que o homem sequer fez a pergunta? Pelo modo como falava, parecia já saber a resposta. Calaramente estava a intimidá-lo. E o rapaz a cair direitinho na armadilha. Os nervos fazem uma pessoa sair de si próprio.
Ner: "Agora não falas?"
Rapaz: "Tem razão."
Ner: "Hã?"
A súbita intervenção apanhou o grandalhão de surpresa. Já para não falar que o miúdo estava a responder a uma pergunta feita há uns bons segundos atrás. Só agora é que reuniu coragem para falar.
Rapaz: "E-Eu estou mesmo com fome, sabe? Não se se olhou para o relógio, mas já nos encontramos no horário de almoço."
Ner: "Quer dizer que é por isso que as ruas andam tão movimentadas..."
Comentou, fingindo-se de sonso.
Rapaz: "Todos os dias há muita clientela nos restaurantes. Muitos trabalhadores vêm almoçar neste tipo de estabelecimentos."
Ner: "Ok. E quanto a ti?"
Rapaz: "Como?"
Ner: "É sexta-feira. Estás numa pausa de trabalho ou algo do género?"
Rapaz: "Intervalo da Universidade."
Fala, mais confiante. Parece estar a conseguir desconversar. As esperanças começam a subir.
Rapaz: "Sabe, é que encontro-me a estudar na Universidade de Stanford da Califórnia. É a uns quarteirões daqui."
Ner: "E vens sozinho?"
Rapaz: "Sim, sou novo na turma, então não se pode dizer que tenho muitos amigos. Isso é algo que tenho a melhorar. Isso e...a atenção nas aulas."
Silêncio segue a sua última fala. Esperava que o homem alto imediatamente respondesse, mas esse não foi o caso.
Ele ficou calado. Mas não parecia estar a processara a informação. Estava a pensar em outra coisa.
Foram 1, 2, 3, 5, 10, 15, 20, 30 segundos. Segundos que pareciam anos com toda aquela tensão. Talvez fizesse parte da estratégia de Ner.
Mais tempo passava. Segundo atrás de segundo até que...
Ner: "Tudo bem. Podes ir."
Rapaz: "???"
Ora aqui está algo que não esperava.
O homem encosta-se à parede, abrindo o caminho para o fim do beco.
Ner: "À vontade. Podes ir. Ah! E desculpa lá se te incomodei. Só fiquei curioso e excedi-me nas perguntas. Erro meu."
Rapaz: "Claro. Não faz mal. Ainda falta muito tempo para acabar a pausa de almoço. O senhor só estava curioso e isso é compreensível."
Diz, numa resposta totalmente improvisada, ainda tentando perceber a virada que esta conversa deu.
Ner: "Mas desculpe, na mesma. Não fiz por mal."
Os dois entreolham-se por um breve momento. Foi este o sinal que deveria sair dali e já.
Rapaz: "Com licença..."
Sussurrando a sua despedida, o rapaz acelera o passo e vai adiante. Passando à frente de Ner, que se encontra com as costas viradas para a parede. Precisava de fazer algo. Aquele tipo ia mesmo assaltá-lo. Disso estava seguro. Por isso, tirou o flip phone do bolso rapidamente. Ia digitar o número de emergências num instante rápido. O problema foi o facto de, nesse instante, com toda a pressa, nem se apercebeu que ainda se encontrava a passar à frente do brutamontes.
Claro que Ner viu. Viu e fez um olhar de decepcionado. Como se aquele seu ato tivesse mudado o rumo das coisas. Tudo teria sido diferente se não tivesse sido pelo maldito telemóvel. Então, sem guardar mistérios, ele não deixa surpresas para o rapaz e alerta-o da asneira que acabou de fazer quando este passa diante de si:
Ner: "Ias sair daqui com vida. Mas agora que vi o telemóvel, cavaste a tua cova. Desculpa-me por isto. IZA VEM COM TUDO! USA A FACA!"
Nesse instante, quando passou pelo brutamontes, julgou ter visto algo. Não era um vislumbre. Quer pensar que foi, mas certamente esse não é o caso.
Quando passou à frente dos olhos de Ner, teve a certeza que viu algo no seu rosto: um sorriso.
Um sorriso súbtil e maldoso. Um gesto que revelou as suas verdadeiras intenções. Um gesto que vale mais por mil palavras e revelou o seu caráter.
Mal sabia o próprio miúdo que esta visão seria uma das últimas coisas que veria.
*Slisch*
Logo que passou pelo grandão, algo perfurou nas suas costas. Algo bicudo e frio. Seja o que for, enfiou-se na sua coluna e espetou-se.
Rapaz: "Hungh..."
*Tchik*
A lâmina é retirada e o rapaz cai de cara no chão, sem forças para se erguer.
Rapaz: "Q-Qu-Que-Q-Quem?"
Iza: "Já nem consegues falar. Acertei-te mesmo bem com a faca. Isso foi inesperado. Nem tinha praticado bem. Ia só pregar-te uma rasteira, mas, mesmo sem saber, improvisei e acertei. Eu sou mesmo bom nisto."
Diz, sem acreditar que conseguiu fazer o que fez.
Está a sua cabeça chapada no chão. Alguém se aproxima. É a pessoa que inseriu a faca nas suas costas. Ao menos poderá vê-lo. Sim, mesmo que não morra (algo que ele bem sabe que é improvável), quer saber quem o apunhalou. O homem agacha-se, pondo-se de cócoras e vê o rosto da vitima.
Mas ele sabe que é improvável sair dali. Depois de uma facada destas terá dificuldade para se levantar e, mesmo que conseguisse se pôr em pé, aqueles dois provavelmente tentariam impedi-lo. Não há outra forma. Já aceitu esse facto. Internamente, por muito que lhe custasse, teve que aceitar que a sua morte seria em momentos.
É claro que não o faz de bom grado. Fá-lo com tristeza e desgosto, especialmente por morrer nas mãos de duas pessoas que nem sequer o conheciam. Nem sequer sabiam que tipo de pessoa ele era, quais eram as suas aspirações, família e se tinha uma namorada. A resposta à última pergunta é sim.
E é por isso que está triste, mas, o que é que vai fazer? Nada pode fazer. Nem consegue ficar em pé. Pode chorar, reclamar, insultar e amaldiçoá-los o quanto quiser, contudo, de que é que adiantará? O universo é tão grande e os humanos são apenas míseras formigas que lá se encontram. Como tal, por muitoq ue nos indignemos e esperemos que o mundo nos vá ajudar, ele não irá, porque o universo está a borrifar-se para nós, formigas.
O rapaz já se tinha conformado com esse facto há muito tempo, na época da escola. Isso explica porque é que nem resistiu aos insultos e se tentou soltar. Primeiro, porque não podia e, segundo, pprque sabia que seria tudo em vão.
Iza: "Matar não é muito comum com a gangue. Pelo menos não era até aos últimos tempos. É que nos só matamos quando a vítima resiste. Nesses casos, gosto de ver o rosto da vítima antes dela morrer. Faz-me perceber que não estou a matar só mais alguém. Estou a matar uma pessoa com legado, família, caráter e sabe-se lá mais o quê."
Iza levanta-se. O rapaz não responde. O seu corpo não se mexe. Os seus olhos estão pesados. Cada vez mais pesados. Nem o viu a olhar-lhe ou sequer a levantar-se de volta. Está fraco e parece que está a ser puxado. Puxado para o outro lado com cada segundo que passava.
Iza: "Desculpa-me puto, mas fica já a saber que a tua vida foi sacrificada apenas por uns trocos. Acho melhor dizer logo a verdade."
Fala para o rapaz, que já nem o ouve.
Nesse instante, umas mão grandes vasculham os seus bolsos e roupa. Deve ser Ner, o grandalhão.
Em pouco tempo, a revisão acaba e algo é tirado do bolso das suas calças.
Ner: "Encontrei algo."
Diz, mostrando a sua descoberta ao chefe.
Iza: "Ui! Esse é o novo modelo, se não estou enganado. Acho que acertámos em cheio."
Por uma última vez, Iza olha para o rapaz. Ele não se mexe. Os olhos estão prestes a fechar. Será seguro dizer que está à beira da morte.
Iza: "Descansa bem. Ao menos sabes que serviste de sacrifício por uma boa massa. E para honrar um certo alguém. Daqui a pouco deves encontrá-lo lá no céu."
Ner coloca o seu pé na cabeça do rapaz, preparado a acabar com tudo. Só precisa da ordem.
Iza: "Só te peço uma coisa: manda uma mensagem ao meu pai. Diz-lhe que eu estou a seguir os seus passos, tal como ele quereria. E tu és prova desse facto. Só te peço que o faças por precaução. Apenas caso as últimas 20 vítimas se tenham esquecido de lhe contar. Ou eram 30? Não me lembro. Mas faz o que te digo, por favor. Entendido?"
O chefe da gangue olha-o de pé por alguns instantes. O rapaz percebe que aqueles dois são muiti mais perigosos do que aparentam. A última frase deixou bem claro o seu destino. É verdade que Iza usou um eufemismo, mas a mensagem foi passada. Vão matá-lo, da mesma forma que já mataram outros antes.
Encara-o com tristeza. Não queria fazer isto, mas, tal como disse, é um sacrifício. Uma vida que servirá um bem maior.
Iza: "Desculpa, miúdo."
E num instante, Ner pontapeia a cabeça do moço.
*Pam*
Afunda o seu pé na cabeça do rapaz, exercendo pressão entre a cabeça e o chão. Só aquele golpe já partiu o nariz do rapaz, deixando-o com uma hemorragia nasal, para além das cicatrizes deixadas pelo impacto.
Já bastava aquilo. Se o queriam assaltar, aquela intimidação já era mais do que suficiente. Contudo, Ner não se apresenta satisfeito. Deixar alguém vivo seria um risco demasiado grande. Um risco que não estaria disposto a correr.
Como tal...
*Pam* *Pam* *Pam*
Ner continua. Pontapeia-o incessantemente, pressionando sempre o rosto da vítima contra o chão. O crânio daquele jovem foi-se fraturando lentamente. As feridas no seu rosto forma ficando mais presentes, à medida que outras eram originadas. Mesmo um dos seus dentes partiu-se. Um daqueles pontapés já era forte, então vários daqueles seguidos apenas pioram a situação.
*Pam* *Pam* *Pam*
Ele continua, continua e continua, sem parar. Iza observa tudo aquilo com desgosto. Não gosta nem um pouco do que está a acontecer. Sabe que é um ato maldoso, contudo, é um ato necessário.
*Pam* *Pam* *Pam*
Ner parece dar tudo de si naqueles golpes. Golpes tão fortes, rápidos e doloros que não deixam espaço para reação. Como tal, o rapaz nada consegue fazer senão permanecer parado no chão a ser pontapeado infinitamente.
*Pam* *Pam* *Pam*
Felizmente, os pontapés pareciam estar a chegar a um fim, da mesma forma que o corpo do rapaz parecia estar a chegar ao seu limite. Ele já sentia a sua consciência a desaparecer. O corpo não resistia a uma agressão tão brutal como aquela. Tinha que chegar ao fim rapidamente.
*Pam* *Pam* *Pam*
O cérebro racha-se. A cabeça tem sido pressionada contra o chão de pedra por demasiado tempo. Mais uns pontapés e tudo acabará. O sofrimento e dor, tudo acabará. É um final triste para um humano, mas é melhor do que ficar a sofrer para sempre. Tudo tem um fim.
*Pam* *Pam* *Pam*
Depois de mais três pontapés, Ner ergue o seu pé no ar uma última vez. O seu sapato gasto irá ser afundado naquela cabeça uma última vez, com o máximo de força possível. É uma pena que as coisas tenham que acabar assim.
É uma pena que aquele jovem com futuro, desejos e talentos, terá que morrer aqui, pelas mãos de uma pessoa. Não deveria ser assim. Este moço tinha um papel a cumprir na sociedade. Quem sabe, talvez ele fosse ser alguém importante, talvez viesse a descobrir a cura para um vírus raro, salvando a vida de muitas pessoas. Mas nada disso acontecerá, pois a sua vida será determinada pelas mãos, pelo pé de outra pessoa.
Rapaz: "P-P-P-Po-Por-Porq-Porquê?"
Aquela última palavra é bastante comum. Nos seus primeiros assassinatos, Ner ainda se sentia tocado, mas agora, ele é só mais um. Outra vítima que não consegue distinguir das outras inúmeras que já matou no passado. Assim funciona um assassino profissional e assim se acaba uma vida.
Então, concentrando toda a sua monstruosa força num último golpe, Ner baixa o pé com força. Afunda-o na cabeça do rapaz. Faz uma pressão absurda na cabeça contra o chão de pedra.
É como se a cabeça fosse uma bomba em enorme pressão. E todos sabem o que acontece nessas situações. A bomba eventualmente explode.
*Kplash* *Splash* *Fisch*
Sangue esvoaça e espalha-se por todo o chão e até nas paredes. Miolos do seu cérebro colam-se à parede. Ossos seus despedaçados ficam no chão, todos manchados de sangue.
O rosto foi completamente desmanchado. A pessoa perdeu a sua identidade. Tornou-se mais uma vítima da gangue do Iza. E tudo isso por dinheiro. Uma pessoa perdeu a sua oportunidade neste mundo por uns trocos.
O assassino está ofegante. Foi um esforço enorme este que exerceu. Todos aqueles pontapés e especialmente o pontapé final foram dados usando toda a sua força. Pode-se dizer que deu tudo de si, como sempre dá em cada morte. Ainda assim, tem ar suficiente para falar.
Ner: "Já está."
Anuncia, ofegante, com a maior tranquilidade e estando completamente inabalado com a tamanha violência em exibição. É como se já tivesse visto aquilo ou outras coisas cem vezes piores durante anos e esta fosse apenas mais uma vez.
Porém, por alguma razão, ele mostra-se triste com o que fez. Tem uma certa tristeza após se aperceber da situação em que se encontrava. E não, não era do facto de alguém ter morrido, pois, para ele, isso já não importava. O que quer que fosse, deixava-o triste. Não, decepcionado e com uma certa raiva. Sentimentos esses que se mantiveram para o resto da cena.
Iza: "Graças a Deus. Bem sabes tu o quanto odeio fazer isto. E olha que não sou eu a finalizar a vítima."
Fala, mostrando um claro alívio pela morte já ser o passado. É a parte que mais odeia e a parte que mais quer despachar.
Ner: "Então deves imaginar o quão difícil deve ser para mim partir a cabeça de um rapaz."
Diz, ainda a tentar recuperar do esforço que exerceu e mantendo o ar de decepcionado o mais escondido possível, enquanto se agacha para vasculhar ainda mais o rapaz. Quer se garantir que não vai deixar nada para trás.
Iza: "Mas tenho de admitir, de vez em quando é bom sermos nós a fazer o trabalho."
Ner: "Hum, pensava que era o único."
Responde, com a respiração mais estável, ao mesmo tempo que apalpa os bolsos do casaco. Tenta também manter as respostas o mais neutro possível, mostrando (sem ser muito claro), que não estava feliz com a situação.
Iza: "Por muito que seja bom ter dezenas de homens a fazer o nosso trabalho, às vezes é necessário os líderes sujarem as mãos."
Ner: "Ainda bem que falas nisso."
O vice-capitão tira a carteira da vítima e abre-a. Ele continua a falar. Desta vez, recupera uma espécie de ar mais neutro. Parece que conseguiu recuperar um resquício de orgulho que se escondia no fundo do seu coração.
Ner: "Muitos dos nossos homens devem andar por aí a cometer mais assaltos, da mesma forma que estamos aqui a fazer."
Iza: "Tem que ser. Precisamos do máximo de dinheiro possível. Não podemos desiludir o nosso comprador."
A vasculha acabou. Ner levanta-se anuncia.
Ner: "Está tudo, por aqui."
Já se encontra recuperado e vê-se que também já pensa melhor e é capaz de formular frases melhores. Está pronto para ir para a próxima tarefa do dia. Sinceramente espera que a situação seguinte o vá satisfazer mais do que esta. Se bem que isso parece ser improvável.
Iza: "Graças a Deus. Já não aguentava olhar para os miolos do cérebro dele espalhados no chão."
Ner: "Daqui a umas horas teremos um encontro com o Reyner, não é? Quer dizer, tenho quase a certeza que é hoje."
Iza: "Esse gajo..."
Ner: "Também não gosto dele, mas..."
Iza: "Ele tem dinheiro. Muito dinheiro. Se o negócio correr bem, vamos deixar os superiores muito felizes."
Ner: "Por isso, vale a pena aturá-lo. Como é que dizem: os sacrifícios compensam o objetivo. Não, não era isso."
O chefe da organização olha para Ner e sorri com toda aquela estupidez.
Iza: "Se eu tentar bater nele, peço-te que me agarres."
Uma promessa colocada em cima da mesa. Nem se questiona. Se Iza pede, Ner cumpre.
O músculo da gangue levanta-se e olha para Iza, com o sorriso de uma amigo. Mais do que companehiros no crime, são amigos e importam-se um com o outro. Mesmo que esse sentimento pareça ter desaparecido pela parte de Ner por breves momentos, ele rapidamente se sentiu obrigado a recuperá-lo.
É um mundo perigoso e um não consegue sobreviver sem o outro. Eles sabem disso e, por isso, ajudam-se um ao outro.
Como tal, Ner responde, considerando que não lhe fará nenhum favor:
Ner: "Farei exatamente como me pedires."